Garota Exemplar (2014)
por Não são as imagens
O filme inicia com um questionamento, “Como saber o que a outra pessoa em um relacionamento amoroso, em um casamento, está pensando? Como saber o que ela está sentindo?”. Aliado ao questionamento vem uma imagem, uma mulher, olhando pra nós, convidando-nos a questionar os pensamentos e sentimentos dessa mulher. A voz que questiona é a voz de um homem, para quem ela olha, estabelecendo então que o ponto de vista da história será a partir da visão do homem, Nick Dunne, de sua esposa, Amy Dunne. Tudo isso em apenas um plano, e no primeiro plano. Em menos de um minuto o plot se apresenta, Amy desapareceu. Nick Dunne, Ben Affleck, está novamente “Procurando Amy” porém dessa vez uma Amy diferente, bem diferente! A apresentação do primeiro dos três atos se inicia ao nos apresentar a história pregressa do casal, quando se conheceram, como o relacionamento se desenvolveu e chegou ao casamento, contrastando com o momento presente com Amy desaparecida. Os três atos estão extremamente bem pontuados, extremamente bem marcados, o roteiro é absolutamente impecável nesse quesito. Amy é uma mulher romântica, dedicada, excepcional, calma, madura e sensual. O casamento no entanto se prova como uma névoa para todas essas qualidades, já que Nick parece totalmente desinteressado em sua incrível esposa. Buscas se iniciam para encontrar Amy, com a ajuda da comunidade local que se sentiu tocada pela linda história de um marido abalado pela tragédia de um possível sequestro. Uma investigação mais apurada revela que o possível sequestro está se inclinando para um possível homicídio… conjugal. O filme nos faz acreditar nisso por um tempo até que batemos no ponto de virada numero 1 e a história muda completamente. Dali o filme parece incerto, não se sabe onde a história vai, quem vai vencer, se vai vencer, exatamente como um segundo ato deve ser. E aí batemos no ponto de virada número 3 e a história muda completamente e de uma maneira totalmente imprevisível, de tal maneira que um Oscar de Melhor Roteiro deveria ganhar suas asas cada vez que alguém assiste essa cena onde o último e derradeiro ponto de virada se estabelece. O terceiro ato nos leva a uma realidade horrível e inescapável e novamente somos apresentados à cena inicial, ao questionamento. “O que você está pensando? O que você está sentindo?” e Amy nos olha nos olhos e aquele olhar possui um significado muito diferente da primeira vez que olhamos em seus olhos. Uma maneira simplesmente incrível de encerrar um filme. Fincher does it again.
O gênero de thriller psicológico está claramente impresso, com perfeição milimétrica, nos planos com ações vazias sem contexto que deixam no ar dúvidas e mantém o suspense. A fotografia é objetiva, deixa chapado e óbvio o que precisa ser visto, transmitido ao expectador. A sensação de perseguição e medo permeia a trama além do escopo particular dos personagens através dos arquétipos modernos, as câmeras, a televisão, o jornalismo, o escândalo, a internet. Uma coisa também excepcional além do roteiro nessa obra é a montagem pelo fato de o filme ser muito extenso, tendo duas horas e meia de duração mas parecer que tem apenas uma hora e meia. Esse é o efeito de uma boa edição, os milhares de planos e diálogos passam mais naturalmente e sem incomodar tanto.
Dentro da construção arquetípica existem dois mentores para Nick, sua irmã gêmea Margo (Carrie Coon) e um advogado famoso que resolve ajudar Nick em sua difícil missão de fugir da prisão, Tanner Bolt (Tyler Perry). Sua irmã serve como grilo falante e nos ajuda a entrar na mente e nos sentimentos de Nick, descobrindo a verdade. Sem a presença de Margo para servir como nossa voz, questionando as ações duvidosas de Nick, perderíamos a profundidade real da história e a tridimensionalidade do protagonista. Nick só se humaniza de verdade ao redor de Margo. Tanner Bolt entra para ser esse grilo falante em um sentido mais amplo e revelar o verdadeiro Nick não para nós, mas para a comunidade que o condena e que quer sua cabeça. Tanner treina Nick para lidar com a perseguição das câmeras e da mídia, enquanto Margo o treina para lidar com a perseguição de Amy, porém apenas uma se mostra derrotada ao fim do filme.
David Fincher does it again! Com um roteiro absolutamente impecável, atuações excelentes mas nada lá muito surpreendentes, direção de arte bem executada mas também nada que mereça destaque. Os elementos que mais contribuem para a obra são a montagem, que sanou mais do que bem o excesso de desenvolvimento do roteiro, que mesmo bom poderia ter sido penalizado com uma montagem ruim, e a fotografia que imprimiu com excelência o gênero, as relações entre os personagens, os olhares, a tensão, e o medo. Recomendadíssimo.
O filme concorre às seguintes categorias no Oscar 2015: melhor atriz para Rosamund Pike. 😦
________________
Lucas Simões – 27 anos, formado em Cinema e Mídias pelo IESB, quase formado em engenharia, quase judoca, quase nadador e quase melhor namorado do mundo de várias garotas. Atualmente trabalha com cinema na função de roteirista e script doctor, exercendo ocasionalmente a alcunha de continuísta em curtas-metragem da região. Sua atividade foi de setembro de 2014 a março de 2015.
Já que o roteiro foi tão elogiado na crítica, acho que cabia dizer que foi escrito pela Gillian Flynn, que também é a autora do livro. Do jeito que tá parece que o Fincher fez tudo sozinho hehe. Let’s not forget about women in movies 😉
CurtirCurtir
Eu diria que o melhor desse filme não é só o suspense (pra mim não só pela montagem mas pela trilha sonora do Trent Reznor, que é genial), mas como o cinema consegue instituir como “verdade” algo que está sendo visto e narrado (nos momentos em que acompanhávamos o diário da Amy). Não era um flash back, mas se passou facilmente por um, e flash back tem, muito facilmente, esse status de “verdade” nos filmes. Como a narração dela era acompanhada de uma imagem, quase como uma “prova”, era difícil não acreditar nela. Ao contrário do que temos do Nick, um discurso solitário, situado no presente. No livro, duvidar dos dois, de forma igual, é mais fácil, porque é discurso x discurso. No filme, o diário não é só um diário. É, por alguns momentos, a “realidade”, ainda que a realidade inventada.
O que traz outra consequência, a sensação de engano é tão forte, quando ocorre o primeiro plot point (afinal, você “viu” tudo o que a Amy disse, e era mentira), que imediatamente o discurso do Nick ganha bem mais força do que ela, e o olhar do Nick (e porque não o olhar masculino) ganha força no filme a cada nova descoberta, e a Amy de repente é apenas mais uma mulher louca, e o Nick é o carinha injustiçado. Isso é muito reforçado pela hora em que ela chega, e pela entrevista que o casal dá na televisão. Nesse ponto, o filme deve ao livro a continuidade da denúncia de quem o Nick é e o que ele representa, no todo-poderoso mundo dos homens. A crítica se esvazia e eu não sei se por causa da direção do Fincher, que no final do filme parece ter se decidido pela identificação total com Nick, ou se pela atuação limitada do Ben Affleck, que tinha menos nuances do que o personagem pedia.
Lamentei a não-indicação do Trent Reznor pela trilha sonora e da Gillian Flynn pelo roteiro adaptado.
CurtirCurtir
Realmente faltou uma menção à Gillian, devo corrigir isso mais adiante quando tivermos textos suficientes para repostar conteúdos ou linkar conteúdos novos a conteúdos antigos. Fiquei de ler o livro para uma revisão mais minuciosa da crítica, deixar mais encorpado também. Sobre o seu comentário do filme eu concordo mas não sei se a coisa chega a entrar na questão do universo masculino/feminino, pra mim ela fica no universo dos relacionamentos. Irmãos, família, amantes, casal e etc. As relações e interações seriam melhor pontuadas pra mim nesse quesito, até mesmo as falhas de Nick não são necessariamente falhas de homem, mas falhas de marido. Eu não sei dizer também até onde a atuação do Affleck é indicação do Fincher ou o processo do próprio ator. Particularmente não achei nenhuma atuação fora do esperado, nenhum ator me emociona, me move, mas novamente eu fiquei muito impressionado com a qualidade do roteiro então talvez tenha negligenciado um pouco esse fator. haha
Eu gosto muito de roteiro com essa enganação, que te faz tropeçar e você não sabe o que vem a seguir. Pra mim esse que é o bom roteiro, aquele que te engana, que te faz sentir a mesma frustração que o personagem sente. Pra mim a Amy é muito mais que uma mulher louca, ela é completamente psicótica, tipo o Coringa, um psicótico imprevisível. Esse é o que assusta mais. E o que eu gosto tanto nesse roteiro é que nem a Amy está imune aos infortúnios da vida, é o tal do vilão que sangra. Se bem que o Affleck estaria mais para o herói que não sangra né. hahaha
Outra coisa que eu adorei foi que esse filme fez a coisa toda caminhar pra um tribunal (momento clássico pra filmes que ganham Oscar) e nunca chega lá. Achei que ia ser mais um filminho de Oscar e fiquei muito feliz por estar enganado. Talvez se eles tivessem feito isso a academia teria indicado, mas aí eu não ia querer que ganhasse.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Ótimo debate, pessoal. Keep on going!
CurtirCurtir