Mergulho em Sozopol (2014) – IV BIFF

por Gustavo Fontele Dourado

Memórias que talvez não possam ser abandonadas, relembrar uma cidade há muito tempo não visitada e beber álcool como a busca de uma redenção mística. Estas são algumas das expressões que criam o mundo de Mergulho em Sozopol, filme da Bulgária e o 3º filme de ficção de Kostadin Bonev, diretor que realizou muitos documentários. Suas outras ficções são Voenen korespondent (2008) e Podgryavane na vcherashniya obed (2002).

Chavo é um homem de meia-idade, entre os 40 e os 50 anos, em busca de uma meta misteriosa: beber 10 garrafas de vodka depois de retornar à Sozopol para vivenciar algo fantástico em sua cidade natal. Somos lembrados através de diversos meios dos boatos ou da lenda de que no final do processo, depois da última garrafa de vodka, um acontecimento mudará as várias vidas dentro do protagonista, da sua cidade e das pessoas ao seu redor.

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Chavo e as dez garrafas de vodka, ambos em uma casa antiga. Personagem vivido por Deyan Donkov. O início do filme já é nostálgico, a visão pela cidade é distante e saudosa.

O filme é um dos mais bonitos do IV BIFF, ele traz um cinema não muito internacionalizado que é o búlgaro e tem arrancado bons elogios das pessoas que o acompanham. Porém, para os desavisados, o cinema búlgaro existe desde 1910 com o filme Bulgaran is a Gallant e tem uma produção regular ao longo de sua história. Mesmo que seja obscurecida por gigantes como a Rússia e a Polônia e cercado por países bastante diferentes entre si como a Turquia, a Romênia, a Grécia e a Macedônia.

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Vasil Gendov, ator de Bulgaran is a Gallant (1910).

Esta obra nos remete ao rito de afogar as más lembranças e os maus sentimentos com a bebedeira, um filme com um mote simples inicialmente e depois disso, desse porto narrativo como desembarque, nós passamos por várias ilhas de memória e de sofrimento ao longo da jornada. Conhecemos mais sobre Chavo e cada vez mais vivenciamos o seu enigma, as pessoas que amou, as pessoas que não conseguiu salvar e as pessoas que fizeram ele abandonar sua Sozopol ou, mesmo o outro lado de Chavo, de ter destruído sua convivência com os outros e que rumou ao isolamento. Exemplos são o seu irmão aspirante à pintor, os conflitos com o pai e os amores perdidos entre três mulheres – uma delas é Neva, amiga do seu segundo amor.

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Mergulho em Sozopol mostra a construção de pessoa de maneira fragmentada e contínua com os outros que interage, Chavo sozinho é um enigma completo e com o passar do tempo sentimos suas motivações, mesmo que não sejam completamente entendíveis. Aos poucos, o filme ganha um ar de ambiguidade em direção ao final totalmente fantástico – o afogamento de sua cidade e simbolicamente de todas as memórias ruins. O que parecia apenas um ato de boemia e de férias, torna-se algo grandioso.

Entretanto, será que Chavo, seus amigos e amigas sobreviverão depois da chuva que torna toda a terra de Sozopol num mar de angústias? Ou o avanço do mar irá acabar antes do afogamento? O tom melancólico não oferece respostas claras assim como no oceano final do filme de Sokurov, A Arca Russa (2002), o mar representa o impossível, Chavo conseguiu superar o rito das 10 vodkas – correu o risco, passou da prova, um dos motivos de seu retorno.  Da mesma forma que Sokurov fez um plano sequência de mais de 1 hora e meia até chegar ao mar – onde não há mais seres humanos e onde todas as memórias estão diluídas. Estes exemplos são ambos atos de impossibilidade e que são encontrados e superados, mas superar a imponderabilidade é algo perigoso em Sozopol e suavizador na Arca Russa.

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Encontros e resoluções de desentendimentos. O clímax da obra.

 

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O ato final, a espera pelo fantástico. Chavo e seus amigos.

Nesse mar tudo é escondido e ao mesmo tempo pode ser cheio de escolhas a serem feitas, elas são apenas de difícil alcance. No filme de Sokurov é apresentada a fronteira final, pois não há mais para onde ir, a câmera não consegue fazer mais escolhas – o mar é grande demais para ser filmado por inteiro, já em Sozopol – o fim nos oferece muitas possibilidades e foi mais sábio que ficássemos com estas duas opções pelo destino das personagens do que esperar pelo ato fatídico final e conclusivo, por respostas prontas. O que importa é a espera das personagens pelo que vai acontecer: eles vão se afogar com mais angústia dentro do mar implacável ou permanecer com aquilo que sobrou de boas lembranças e assim experimentar um pouco de ar e a continuidade da vida. Quais opções vão se concretizar?

Perguntamos se aqueles personagens tem poder de escolha depois de quebrar o sagrado, beber 10 garrafas de vodka, ou o que eles apenas podem fazer é sentir a resignação e aguardar pelo fim da elevação do mar e a absorção completa de Sozopol pelo infinito, pelo oceano sem volta. O que fica nítido é que há uma mudança radical e o que parecia lenda se torna verdadeiro, o que era sagrado e distante se torna numa ação concretizada.

Minha teoria é de que as 9 garrafas de vodka foram bebidas com rancor, com uma nostalgia sufocante da solidão e o de remoer lembranças. Tudo cheio de palavras e ações, como elucidado pela voz over de Chavo e o pulo em diferentes acontecimentos do passado. Já a última foi apreciada sem pretensões, ao lado de pessoas queridas e sem palavras, com poucas ações como mostrado na cena dentro da casa de Chavo e de todos sentados à mesa. Portanto o mar avançaria proporcionalmente às 9 garrafas de angústia e depois disso a última garrafa seria a salvação e o milagre, oportunidade para novas memórias.

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Mergulho em Sozopol representa uma renovação do cinema de intimidade e propõe um reencantamento do mundo, uma Europa que pode sair do seu sufoco, mesmo que reste pouco para que isso seja experienciado. Por estas considero como uma obra importante e certamente um dos melhores representantes da Bulgária nos últimos anos.