Uma realidade por segundo (2015) – IV BIFF

by Gustavo Menezes

Todos os países têm problemas sociais. Mesmo os mais ricos. Mesmo aqueles em que a distribuição de renda é mais igualitária. Tomando a Bélgica como objeto de estudo, o roterisita e diretor Karim Ouelhaj tenta expor as mazelas de sua sociedade.

Adotando desde o início um tom documental, o longa adentra a residência de uma família de classe média composta por uma mãe viciada em drogas, um pai violento e uma filha de 13 anos, Romane (Romane Dideberg), que acaba fugindo de casa ao presenciar mais uma briga.

Em pouco tempo, a polícia está lá investigando a situação e buscando formas de identificar a menina. Acompanhando os policiais está um “educador de rua” (Luc Hélin), como ele mesmo se define. Esse educador, que usa cabelo grande e brinco, é construído como um sujeito simpático que sai pela cidade ajudando pessoas em situação de rua. Ele próprio tem um passado de conflitos familiares, tendo fugido de um lar adotivo aos 15 anos.

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Romane passa a noite vagando pelas ruas, usando uma máscara de monstro que ao mesmo tempo espelha a realidade dura que está prestes a descobrir e a contrapõe com sua infantilidade. Ela é surpreendida por homens que desejam se aproveitar de sua ingenuidade, incluindo um que a usa como fantasia masturbatória e outro que, sem motivo, a persegue de arma em punho.

O filme abandona Romane momentaneamente para concentrar-se no educador, que vai encontrando e ajudando pessoas em variados níveis de dificuldade, com enfoque principal em Vladimir (Olivier Picard), um homem de meia idade que se prostitui todas as noites. O educador oferece ao homem uma carona, contanto que o acompanhe até terminar seu turno. No carro, os dois vão conversando e revelando dados sobre o país (como a impressionante ausência de crianças de rua) e sobre si mesmos.

Em outros momentos mais soltos, a narrativa expõe casos pontuais de violência, num pretenso tom de denúncia e consciência social. Isso porque pretensão é o que o filme mais tem – de nos chocar com “uma realidade por segundo” -, mas com ela realiza pouco. E de forma cruel.

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Se por um lado é válido o interesse em estudar fenômenos como a prostituição, o vício em drogas e a xenofobia, por outro o que se faz com esses tópicos tem simples valor de choque. Assim, a câmera se deleita enquadrando o rosto ensanguentado de um imigrante agredido por um grupo extremista, exibindo um jovem que é espancado e humilhado ao extremo (quando urinam sobre seu rosto) por outro grupo, sem razão alguma, ou mesmo enfocando o cadáver de Romane quando, ao final, ela é assassinada do mesmo modo inconsequente por outro extremista. Para piorar a indecisão do longa, o assassino – que é comparado sem nenhuma sutileza a Travis Bickle, personagem de Robert DeNiro em Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) – é muçulmano.

De forma igualmente errônea, a construção do filme soa confusa ao não se decidir sobre o estilo que prefere seguir. Aqui, a câmera-na-mão, documental, é substituída pelo caos, com planos giratórios e desfocados (e como abusa do desfoque!). Ali, a trilha monótona de tons tensos dá lugar a um rock que acompanha planos em câmera lenta, quase como um videoclipe. Noutro momento, a montagem repetitiva deixa mais do que óbvia a presença de Romane ao fundo do quadro durante a conversa do educador com um de seus “clientes”. Tudo tão sem causa aparente como os requintes de crueldade que pipocam na tela inesperadamente.

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Por outro lado, a fotografia de Némo Welter acerta ao privilegiar os tons escuros e uma iluminação carregada em verde ou amarelo, que dão às cenas externas um ar sujo, quase repulsivo.

E, para não dizer que exposição inconsequente de violência domina toda a obra, a porção final parece apontar uma solução. Intitulada “uma outra realidade” e filmada em preto-e-branco, ela volta a Vladimir, agora bem de vida. Seria um flashback? Ou uma projeção de seu futuro? Nada fica muito claro, mas sua conduta de oferecer ajuda a uma jovem parece apontar que a chave da “salvação” do que foi exposto nas outras porções está na bondade individual. Uma conclusão ingênua demais para o tipo de filme que Ouelhaj se propôs a fazer.