O Abismo Prateado (2013)

por Victor Cruzeiro

Quando se faz crítica cinematográfica, há essa necessidade inviolável de ela deve bastar-se em apontar falhas ou, quando muito, comemorar acertos e continuidades na obra de um diretor, consolidando sua linha de autoria que, com sorte, o diferenciará dos demais e o tornará bom. Mas qual o objetivo de fazer uma crítica tão sistemática frente a uma obra que se mostra tão múltipla não só para aquele que a faz, mas para aquele que a assiste?

Tomemos como exemplo, o diretor cearense Karim Aïnouz. Elogios a ele e sua obra são desnecessários. Muitos já os fizeram antes deste texto. E, mais ainda, seus vários prêmios em mais de vinte anos de carreira dispensam louvores aqui e ali sobre aspectos técnicos e estéticos específicos desse ou daquele filme. Sua extensa – em número e gênero – filmografia possui vários exemplos que demonstram como é possível querer dizer e fazer sentir muito sem grandes artimanhas nem pretensões.

Veja O Abismo Prateado. Um projeto modesto realizado em parceria com a HBO América Latina, livre-leve-e-soltamente inspirado na canção Olhos nos olhos, de Chico Buarque, o filme não traz ambições que justifiquem o pedestal em que o futuro diretor de Praia do Futuro foi posto.

Não é um filme ganancioso. Não pretende reinventar a roda nem inaugurar uma nova escola cinematográfica. Mas, uma vez mais, qual a necessidade disso (a não ser para a satisfação da crítica como técnica)? Karim é dono de um realismo comum a todos – diretores ou não – e aqui conta uma história que pareceria banal, não estivesse projetada em tela grande ou timbrada pela marca da HBO.

Violeta (Alessandra Negrini) é abandonada pelo marido, Djalma. Piloto ou comissário (não importa), ele avisa a ela, por celular, que vai embarcar e que não voltará, que se sente sufocado e que não a ama mais. Em desespero, ela sai em busca de uma resposta, seja na insistência do celular ou no apoio de uma amiga. Mas nada preenche o vazio dessa agonia como ir ao encontro do marido.

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Violeta e sua profundidade de campo, sua solidão e angústia na linguagem da câmera.

O breve filme mantém-se próximo o suficiente para mostrar ao espectador como o abandono está deixando a jovem dentista carioca à beira da loucura. Mas então ele pergunta, e quem não ficaria assim em uma situação similar? Com um filho de 14 anos e um apartamento recém-comprado à beira mar, como evitar o desespero? Como ignorar tamanha aflição frente a uma vida inteira que se esfacela através de um simples recado de celular?

É a vida inteira de Violeta que se perde nessa tormenta inesperada. E tão inesperado quanto a fuga do seu marido, está o fato de que – incrivelmente – tudo continua normal. Nada, absolutamente, parou por Violeta. Ali há um prédio que é erguido enquanto ela é deixada pelo marido. Lá está o trabalho que tem que ser feito independentemente do que se esconde no peito dela. E o elevador continua demorando a chegar apesar de toda aquela angústia.

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Não importa o quão grande é a sua preocupação, o trabalho tem de continuar. Pessoas dependem das escolhas que você fez.

Nesse turbilhão de confusão e dor, surgem as serendipidades, como forma de justificar o que acontece e, assim, buscar algum conforto em uma força superior. Violeta vai a um motel e tenta abrir uma janela emperrada. Na televisão, Mariana Ximenes diz que “não veio pedir pra voltar nem implorar perdão” para Tony Ramos. Tudo parece conspirar e lembrar jovem da sua dor. Mas nada disso é real.

Violeta é presa não de um abandono, mas de uma vida que tem que seguir, mesmo que ela não saiba como fazê-lo. O abandono foi fortuito, uma tragédia que pode assumir qualquer forma e acontecer com qualquer um. Não é um grande enredo, não é uma aventura épica, não é um final feliz.

Nesse abismo posto, Karim fez escolhas estéticas sóbrias e definidas. A câmera mantém-se próxima de Violeta, distanciando ela do fundo num desfoque contínuo. Isolada em sua dor, ela pode tentar ignorar o mundo que a cerca o quanto quiser, mas ele permanece! Do mesmo modo, as outras pessoas ao redor, como a taxista e a menina Bel, lembram a nós, os espectadores, e quiçá a Violeta, que tragédias pessoais acontecem com todos nós, mas nossas dores não chegam aos outros com a mesma intensidade que em nós.

O encontro fortuito de Violeta e a menina Maria Isabel, em um banheiro público de Copacabana, é a projeção de como cada indivíduo carrega seus dramas, particularmente insolúveis, mas absolutamente insondáveis para os demais. Mesmo que haja momentos acidentais de encontros e compartilhamentos, esses problemas não deixarão de existir, nem se resolverão magicamente como nos filmes de Hollywood.

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“Vou colocar esse plano pros incautos pensarem que vai acontecer uma redenção e os dois vão ficar juntos e magicamente solucionar seus problemas”, disse o subversivo Karim.

Maria Isabel continuará sem a mãe. Seu pai, Nassir, continuará sua jornada penosa do interior de São Paulo até o interior de Pernambuco. E Violeta continuará sem o marido, cuidando do filho adolescente da melhor maneira que puder. Desafios, dores e tragédias são inerentes a cada um, mas não são prioridade para o mundo. C’est la vie, diriam Emerson, Lake e Palmer.

Em um texto muito bem posto sobre o filme, Fábio Andrade diz que “O Abismo Prateado é o extracampo de O Céu de Suely”, trabalhando o tema da fuga segundo os olhos de quem fica, e não de quem vai. O cinema tem essa gloriosa prerrogativa de nos criar afetos por aqueles que acompanhamos. Torcemos para que Suely seja feliz, apesar de abandonar João, e esperamos que Djalma se retrate ou sofra com a felicidade de Violeta (melhor ainda!). No entanto, como todo enquadramento, devemos lembrar que muito ficou de fora. Suely e Violeta sofrerão, assim como João e Djalma, agora ou depois. Não sofremos, portanto, todos?

Assim, a escolha da música de Chico Buarque não parece de todo acaso (se também me permitem uma serendipidade). Olhos nos olhos acaba em sol, o sétimo grau da escala de lá maior, dando uma sensação de inacabamento, assim como o filme. Os sofrimentos – e em mesmo grau os prazeres, é importante, lembrar – não acabarão com os créditos, mas estão aí, fora do quadro e no desfocado da vida dos outros.

O Abismo Prateado, que carrega em si a ambição grandiosa de um título metafísico e antológico, resigna-se à banalidade de um problema que se enfrenta tão facilmente como um dente extraído se enfrenta com sorvete. Não por mágica, mas por necessidade. A vida tem que continuar. O abismo que se coloca, em questão, é talvez o da reflexão no espelho – prateado – em que a protagonista se observa enquanto tenta organizar seu apartamento e fingir que a vida segue normal. Ou, mais ainda, é o abismo da projeção – a tela de prata, dizem os ingleses – que separa, mas aqui aproxima mais do que nunca, Violeta dos espectadores.

Como me confessou uma amiga, ao terminar, ela chorou “não pelo filme em si, mas pela vida”. A ela, e a todos os outros, dedico este texto.

 

P.S. – Preciso lembrar também que, ao que parece, só existe um arquivo desse filme na internet, e aos 43:55 ele tem um glitch incrível que parece feito sob medida. Mais uma mostra de como os meros acasos ressignificam as coisas!