Não são as Imagens

…que fazem o filme, mas a alma das imagens.

Mangue Negro (2008) + A Noite do Chupacabras (2011)

by Victor Cruzeiro

Vamos falar sobre terror. O medo, o sangue, a dor, o monstro, o susto. Sim, nós sabemos fazer tudo isso. E muito bem!

Acho que todos sabemos como o terror é um gênero inglório no país. Quantos cineastas de terror brasileiros você pode citar de uma só vez? Quantos filmes de terror nacional você viu nos últimos anos? Muitas vezes, parece que o gênero começou e se esgotou com Zé do Caixão. Isso não é verdade, claro… Mas assusta tanto quanto os próprios enredos. Felizmente, é possível encontrar muitos realizadores que se esforçam, a passos largos e pesados, por manter vivo esse gênero.

Agora vamos falar sobre Rodrigo Aragão. Mais especificamente, sobre dois de seus filmes que, por vários motivos, me deixaram indeciso o suficiente para não conseguir escolher só um, e ter de fazer um texto-dobradinha: Mangue Negro (2008) e A Noite do Chupacabras (2011). São filmes bastante distintos (ainda que sejam parte de uma mesma trilogia, finalizada com Mar Negro), mas que compartilham, além da equipe, algumas referências e, acima de tudo, uma identidade de horror, parte de um projeto de cinema e de vida de Rodrigo.

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Rodrigo Aragão foi influenciado desde cedo pela indústria dos efeitos especiais de Hollywood, e começou no cinema através dos efeitos especiais (segundo ele próprio, graças a O Império Contra-Ataca). Com o tempo, no entanto, ele percebeu o limitadíssimo espaço desse tipo de atividade no cinema mainstream. E, mais do que isso, Rodrigo percebeu como o cinema nacional se recusava a abraçar o gênero tão rico do terror, que ele consumia vorazmente desde Sam Raimi (Evil Dead está sempre presente na sua obra) até os filmes de monstro japoneses.

O cinema de Rodrigo pergunta-se, então, por que o gênero que se arvora com tanto sucesso lá fora, cresce tão murcho nos estúdios brasileiros? Por que o cinema brasileiro não percebe o potencial de histórias e paisagens que o Brasil tem para o terror?

São essas as razões que o levaram a escolher um manguezal e a mata atlântica para filmar Mangue Negro e A Noite do Chupacabras. E deve-se notar que sua autenticidade não se esgota na escolha dos cenários, mas nas histórias que nascem, cercam e penetram esses lugares. Mangue Negro narra uma noite de ataque zumbi em uma pequena comunidade à beira de um mangue que, literalmente, morreu após anos de contaminação de lixo. A Noite do Chupacabras traz a lendária criatura – genuinamente latinamericana – sedenta de sangue e à caça na noite em que duas famílias inimigas se enfrentam num confronto derradeiro. No meio desses dois enredos, misturam-se religiosidades, superstições, costumes, mazelas e músicas só nossos.

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Dona Benedita (André Lobo), que rompe o cânone de zumbi inserindo elementos sobrenaturais muito próprios em Mangue Negro

É a velha Benedita de Mangue Negro, por exemplo: curandeira descendente de escravos que morou a vida inteira no mangue. E a família Carvalho de A Noite do Chupacabras, grileiros violentos e inconsequentes que tentam há muito roubar as terras de uma família de pequenos produtores. E em ambos ronda o espectro da poluição ambiental, que culmina com o último filme da trilogia, Mar Negro.

Ora, contar uma história de terror é valer-se dos sentimentos mais puros e instintivos do ser humano para botar algo em evidência. É usar a escuridão para trazer algo à luz. O medo, a dor, o susto, são responsáveis pela catarse que a narrativa quer gerar. Por isso o terror não se esgota no filme de fantasma estadunidense ou no monstro japonês. Longe disso. O que se esgota ali é a assimilação da produção e do público. O gênero é tão prolífero quanto são os esqueletos no armário de um país, de uma época ou de uma sociedade.

Rodrigo Aragão esmera-se na construção de um mundo próprio, onde as referências do terror enlatado encontram o sabor único capixaba/brasileiro/latino. E é ali que ele usa e abusa da abjeção natural ao gênero – enfatizada pela maquiagem e efeitos que ele tanto domina – para apontar os reais monstros que se escondem atrás das fábulas negras do seu cinema. Muitos dos seus personagens são tão horríveis quanto seus monstros, com a diferença que são bem mais reais.

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Uma das decisões estéticas mais fantásticas é a noite de Mangue Negro, toda em cinza e roxo.

Finalmente, Aragão não ganha somente por se esmerar na produção sem orçamento de filmes tão próprios (em todos os sentidos, visto que não há edital que abrace suas ideias). Ele conquista na construção de um universo expandido – uma espécie de mundo de horror aragoniano – que, espero, não acabe com o fim desta suposta trilogia. Há cruzamentos de personagens e assuntos, como a referência à grande mancha de Mar Negro em A Noite do Chupacabras. Além disso, o personagem Luís, herói de Mangue Negro, é visto em um bar de A Noite sob condições bastante suspeitas.

Em suma, Rodrigo Aragão é dono de escolhas estéticas bastante únicas, fruto de uma trajetória igualmente singular (seu produtor é um fã inveterado de filmes antigos e de terror). Parece-se, no fundo, com todo pobre diabo que tenta fazer cinema sozinho no país. Pela falta de financiamento, faz filmes com baixo-e-pouco orçamento, com atores iniciados ali e efeitos desenvolvidos no calor do momento. Além disso, não é distribuído no Brasil (sequer direto para vídeo), mas ganha prêmios e exibições nos EUA, Holanda, Alemanha, Japão… É preciso admitir que, seus filmes são bastante assustadores em vários momentos, mas isso sim é medonho!

O Abismo Prateado (2013)

by Victor Cruzeiro

Quando se faz crítica cinematográfica, há essa necessidade inviolável de ela deve bastar-se em apontar falhas ou, quando muito, comemorar acertos e continuidades na obra de um diretor, consolidando sua linha de autoria que, com sorte, o diferenciará dos demais e o tornará bom. Mas qual o objetivo de fazer uma crítica tão sistemática frente a uma obra que se mostra tão múltipla não só para aquele que a faz, mas para aquele que a assiste?

Tomemos como exemplo, o diretor cearense Karim Aïnouz. Elogios a ele e sua obra são desnecessários. Muitos já os fizeram antes deste texto. E, mais ainda, seus vários prêmios em mais de vinte anos de carreira dispensam louvores aqui e ali sobre aspectos técnicos e estéticos específicos desse ou daquele filme. Sua extensa – em número e gênero – filmografia possui vários exemplos que demonstram como é possível querer dizer e fazer sentir muito sem grandes artimanhas nem pretensões.

Veja O Abismo Prateado. Um projeto modesto realizado em parceria com a HBO América Latina, livre-leve-e-soltamente inspirado na canção Olhos nos olhos, de Chico Buarque, o filme não traz ambições que justifiquem o pedestal em que o futuro diretor de Praia do Futuro foi posto.

Não é um filme ganancioso. Não pretende reinventar a roda nem inaugurar uma nova escola cinematográfica. Mas, uma vez mais, qual a necessidade disso (a não ser para a satisfação da crítica como técnica)? Karim é dono de um realismo comum a todos – diretores ou não – e aqui conta uma história que pareceria banal, não estivesse projetada em tela grande ou timbrada pela marca da HBO.

Violeta (Alessandra Negrini) é abandonada pelo marido, Djalma. Piloto ou comissário (não importa), ele avisa a ela, por celular, que vai embarcar e que não voltará, que se sente sufocado e que não a ama mais. Em desespero, ela sai em busca de uma resposta, seja na insistência do celular ou no apoio de uma amiga. Mas nada preenche o vazio dessa agonia como ir ao encontro do marido.

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Violeta e sua profundidade de campo, sua solidão e angústia na linguagem da câmera.

O breve filme mantém-se próximo o suficiente para mostrar ao espectador como o abandono está deixando a jovem dentista carioca à beira da loucura. Mas então ele pergunta, e quem não ficaria assim em uma situação similar? Com um filho de 14 anos e um apartamento recém-comprado à beira mar, como evitar o desespero? Como ignorar tamanha aflição frente a uma vida inteira que se esfacela através de um simples recado de celular?

É a vida inteira de Violeta que se perde nessa tormenta inesperada. E tão inesperado quanto a fuga do seu marido, está o fato de que – incrivelmente – tudo continua normal. Nada, absolutamente, parou por Violeta. Ali há um prédio que é erguido enquanto ela é deixada pelo marido. Lá está o trabalho que tem que ser feito independentemente do que se esconde no peito dela. E o elevador continua demorando a chegar apesar de toda aquela angústia.

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Não importa o quão grande é a sua preocupação, o trabalho tem de continuar. Pessoas dependem das escolhas que você fez.

Nesse turbilhão de confusão e dor, surgem as serendipidades, como forma de justificar o que acontece e, assim, buscar algum conforto em uma força superior. Violeta vai a um motel e tenta abrir uma janela emperrada. Na televisão, Mariana Ximenes diz que “não veio pedir pra voltar nem implorar perdão” para Tony Ramos. Tudo parece conspirar e lembrar jovem da sua dor. Mas nada disso é real.

Violeta é presa não de um abandono, mas de uma vida que tem que seguir, mesmo que ela não saiba como fazê-lo. O abandono foi fortuito, uma tragédia que pode assumir qualquer forma e acontecer com qualquer um. Não é um grande enredo, não é uma aventura épica, não é um final feliz.

Nesse abismo posto, Karim fez escolhas estéticas sóbrias e definidas. A câmera mantém-se próxima de Violeta, distanciando ela do fundo num desfoque contínuo. Isolada em sua dor, ela pode tentar ignorar o mundo que a cerca o quanto quiser, mas ele permanece! Do mesmo modo, as outras pessoas ao redor, como a taxista e a menina Bel, lembram a nós, os espectadores, e quiçá a Violeta, que tragédias pessoais acontecem com todos nós, mas nossas dores não chegam aos outros com a mesma intensidade que em nós.

O encontro fortuito de Violeta e a menina Maria Isabel, em um banheiro público de Copacabana, é a projeção de como cada indivíduo carrega seus dramas, particularmente insolúveis, mas absolutamente insondáveis para os demais. Mesmo que haja momentos acidentais de encontros e compartilhamentos, esses problemas não deixarão de existir, nem se resolverão magicamente como nos filmes de Hollywood.

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“Vou colocar esse plano pros incautos pensarem que vai acontecer uma redenção e os dois vão ficar juntos e magicamente solucionar seus problemas”, disse o subversivo Karim.

Maria Isabel continuará sem a mãe. Seu pai, Nassir, continuará sua jornada penosa do interior de São Paulo até o interior de Pernambuco. E Violeta continuará sem o marido, cuidando do filho adolescente da melhor maneira que puder. Desafios, dores e tragédias são inerentes a cada um, mas não são prioridade para o mundo. C’est la vie, diriam Emerson, Lake e Palmer.

Em um texto muito bem posto sobre o filme, Fábio Andrade diz que “O Abismo Prateado é o extracampo de O Céu de Suely”, trabalhando o tema da fuga segundo os olhos de quem fica, e não de quem vai. O cinema tem essa gloriosa prerrogativa de nos criar afetos por aqueles que acompanhamos. Torcemos para que Suely seja feliz, apesar de abandonar João, e esperamos que Djalma se retrate ou sofra com a felicidade de Violeta (melhor ainda!). No entanto, como todo enquadramento, devemos lembrar que muito ficou de fora. Suely e Violeta sofrerão, assim como João e Djalma, agora ou depois. Não sofremos, portanto, todos?

Assim, a escolha da música de Chico Buarque não parece de todo acaso (se também me permitem uma serendipidade). Olhos nos olhos acaba em sol, o sétimo grau da escala de lá maior, dando uma sensação de inacabamento, assim como o filme. Os sofrimentos – e em mesmo grau os prazeres, é importante, lembrar – não acabarão com os créditos, mas estão aí, fora do quadro e no desfocado da vida dos outros.

O Abismo Prateado, que carrega em si a ambição grandiosa de um título metafísico e antológico, resigna-se à banalidade de um problema que se enfrenta tão facilmente como um dente extraído se enfrenta com sorvete. Não por mágica, mas por necessidade. A vida tem que continuar. O abismo que se coloca, em questão, é talvez o da reflexão no espelho – prateado – em que a protagonista se observa enquanto tenta organizar seu apartamento e fingir que a vida segue normal. Ou, mais ainda, é o abismo da projeção – a tela de prata, dizem os ingleses – que separa, mas aqui aproxima mais do que nunca, Violeta dos espectadores.

Como me confessou uma amiga, ao terminar, ela chorou “não pelo filme em si, mas pela vida”. A ela, e a todos os outros, dedico este texto.

 

P.S. – Preciso lembrar também que, ao que parece, só existe um arquivo desse filme na internet, e aos 43:55 ele tem um glitch incrível que parece feito sob medida. Mais uma mostra de como os meros acasos ressignificam as coisas!