A Luneta do Tempo (2014)

por Gustavo Menezes

A Luneta do Tempo, estreia de Alceu Valença na direção, chegou aos cinemas brasileiros em 2016, dois anos depois de pronto. Nada diferente do grosso da produção independente nacional, que é relegada geralmente ao circuito de festivais e, com sorte, lançada comercialmente numa quantidade ínfima de cinemas.

Da mesma forma, as culturas regionais do país estão cada vez mais relegadas a nichos. Isso talvez explique uma certa quantia de rejeição por parte do público que chegou a ver a Luneta. Os temas de que a obra trata, por mais que se tenha uma noção geral do que foi o cangaço, do que é a literatura de cordel ou da região em que se passa a ação, não são de conhecimento amplo.

Untitled-5

Alceu, como era de se esperar, domina os assuntos que aborda. Músico e poeta talentoso, ele incorporou o cordel a seu roteiro de forma pouco usual: Não apenas os diálogos são versificados e rimados à sua moda, como a própria ordem de cenas e acontecimentos segue uma falta deliberada de linearidade. A impressão que se tem é que de fato o filme saiu de um cordel, já que há saltos no tempo que não se justificam pelo desenvolvimento da trama, parecendo inventados ao gosto do poeta.

A trama principal se passa em duas épocas: 1938, beirando o massacre de Angicos que iniciou a derrocada do cangaço, e meados dos anos 60. Na primeira, apresentam-se o cangaceiro Severo Brilhante e o militar Antero Tenente, dois rivais que duelarão no clímax da primeira parte, culminando na morte do primeiro e, finalmente, nas mortes de Lampião e Maria Bonita. Também entra em cena Nagib Mazolla, dono de um circo mambembe que está passando pela região.

Untitled-7

Na segunda época, o filho de Severo e o filho de Antero se tornarão rivais – este, também militar; aquele, artista circense entusiasta do cangaço. O que os dois não sabem é que são, na verdade, irmãos por parte de pai: o dono do circo, amante secreto das duas mães.

Essa consanguinidade entre os oponentes ganha contornos ainda mais interessantes quando os dois reencenam, num espetáculo de circo, o duelo entre seus “pais”. O artifício não serve tanto para questionar as representações do cangaço ou da polícia, mas sim para ligar as duas épocas por rimas visuais e pelo próprio destino do “homem do sertão”, sempre sujeito à violência, à morte inesperada. Ao que parece, condenado pelo próprio sangue à tragédia, pois tanto o conflito real como o encenado resultam em morte verdadeira.

442920

Entrecortando a trama dos dois irmãos, entra a vida após a morte de Lampião e Maria Bonita, imaginada por um cordelista da cidade. É aí que se apresenta a tal luneta do tempo, por meio da qual Lampião olha para o passado. Essas cenas concentram-se na relação romântica do casal, com direito a corridinha em câmera lenta, chuva de pétalas, troca de olhares abobalhados e mesmo flertes com o musical. Sobra para Hermila Guedes, que não tem muito a fazer além de sorrir e olhar apaixonada para Irandhir Santos. Ele pelo menos tem outras facetas de Lampião para explorar.

Assim, as duas porções reais do filme se intercalam com as duas imaginárias – da fabulação sobre a vida no além e da encenação circense do duelo real. Essas últimas bebem nas representações populares do cangaço e de seus mitos que até hoje são feitas no nordeste. Alguns dos mais célebres folhetos de cordel versam mesmo sobre o paradeiro de Lampião após sua morte. O clássico de José Pacheco, A Chegada de Lampião no Inferno, conclui que o bandoleiro não conseguiu abrigo nem no céu nem no inferno: por certo está no sertão.

o9w2335

Há também momentos no filme que indicam uma espécie de transe visual, com a câmera em devaneio pelas locações, passando, em cortes rápidos, pela aridez do sertão ou pelo cenário exuberante de Nova Jerusalém, maior teatro a céu aberto do mundo. A escolha do teatro não foi por acaso: nele foi rodado o também cordelesco A Noite do Espantalho (Sergio Ricardo, 1974), filme em que um jovem Alceu Valença interpreta o papel-título, em sua estreia no cinema.

Nota-se uma inspiração temática no filme de Sergio Ricardo, embora Alceu seja menos ousado esteticamente. Enquanto A Noite do Espantalho é carregado de figurinos imaginários que servem de metáfora ou remetem às mitologias do cordel e do sertão, A Luneta busca sempre o realismo. Mesmo assim, o trabalho da arte é louvável pelo apuro estético: as roupas e os adereços dos cangaceiros fogem do bege onipresente nas produções do gênero, apresentando um pouco das cores da estética riquíssima do cangaço, que se somam às cores do circo.

Untitled-3

Da mesma forma, não falta criatividade à ótima trilha sonora, toda a cargo de Alceu Valença. As canções misturam os tradicionais versos de cordel e aboios ao som pesado, com letras ora simples que chamam as moças para ver o circo ou falam de amor, ora reivindicam a atenção da classe política aos problemas da região, ora movem a narrativa.

Entre erros e acertos, A Luneta do Tempo é, sem dúvida, um exemplar interessante do tratamento do cangaço e da incorporação do cordel à linguagem no cinema brasileiro. Quem sabe, se tivesse uma distribuição decente, ele não fosse responsável por uma revitalização do filme de cangaço?