Hoje (2011)

por Gustavo Fontele Dourado

Tata Amaral é uma das grandes diretoras do cinema brasileiro e este filme expressa sua maturidade com alguns dos seus temas preferidos: um passado repressor. Ou como contexto social: a ditadura militar. Hoje (2011) não é a constatação de tempos de opressão ou a descrição exaustiva dos fatos – é o desapego e liberação dos desaparecidos.

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A diretora Tata Amaral e a protagonista Denise Fraga.

Vera é uma ex-militante que se muda para um novo apartamento em São Paulo, lá ela organiza o espaço desde o início e a visita mais inesperada e absurda acontece – o seu ex-marido Luiz que conviveu com ela nos tempos de ditadura. Ele chega no apartamento de forma abstrata, é um velho conhecido que vem para atualizar a conversa.

O espaço-tempo fílmico da obra acontece no confronto entre Vera e um fantasma, que para nós está claro que morreu. Vera mantém uma ilusão e deve dialogar e sentir os novos anos sem e com o seu fantasma. Como ele seria se estivesse vivo? Vera precisa sair do confinamento que o remorso traz.

Co-produzido pela HBO, o filme já traz dinamismo em sua imersão – uma grande atriz, Denise Fraga, sai do conforto ao interpretar uma pós-tragédia, um isolamento do mundo de fora ao se prender dentro do apartamento, onde suas imagens ganham vida. O ritmo é bastante sucinto até à primeira metade da obra, o elenco está muito bem encaixado e os diálogos conduzem de forma prática a observação da câmera eficaz que testemunha a organização do apartamento e das novas possibilidades de Vera.

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O intruso, Luiz, chega pelo espelho.

Através de uma dupla-visita: a da síndica e a de Luiz, Vera atende ao passado e não ao presente que é simbolizado pela síndica. Para ela, o passado ainda é muito mais interessante do que as trivialidades de saber sobre o prédio e o seu funcionamento.

Apesar de se prender ao misterioso Luiz, o apartamento continua em sua organização e em segundo plano. O espaço fora do quadro acontece tanto no nível perceptível/oculto e quanto no metalinguístico – as imagens e dores de Luiz podem ser para os espectadores ou para os que ainda estão vivos somente um filme antigo, um filme proibido e chocante. Em raros momentos da obra, vemos imagens vindas de um projetor – o apartamento de Vera é um cinema de horrores que só ela consegue pagar o ingresso.

As imagens projetadas surgem como uma surpresa, como se fosse uma película esquecida ou de violência impactante. A obra faz questão de dizer que o fantasma é uma ilusão, ele não existe – a graça está em como ele se materializa a partir de Vera e a cada sequência sabemos um pouco de seu relacionamento.

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O passado e a memória precisam de rearranjos.

O passado das personagens se projeta como um anagrama pouco decifrável, ele está ali para nos dizer que estamos fadados a conhecer pouco o que já foi executado e proferido. A História não pode ser teorizada por completo, há dados demais, há gente diluída e reduzida em palavras e em frases pouco identificáveis.

O trunfo do filme é a profundidade de Vera e do fantasma que ainda acha que está vivo – tudo graças à complexidade da imaginação de Vera. Tudo vem de Vera no filme e sua redenção é se consagrar como livre e auto-suficiente e viver dessa maneira. O fantasma é uma dessas palavras, conseguimos ver essa ilusão de quase carne que ao se ferir nem sente nada. O filme parece ironizar o quanto sentimos por essas pessoas mortas que se transformaram em palavras projetadas em espaços vazios.

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César Troncoso depois de reviver o ferimento no rosto com uma navalha. Nas paredes vemos as projeções como se fossem fragmentos das dores da ditadura. Até o próprio ferimento parece uma projeção.

Há momentos que Vera consegue ter auges de imersão com Luiz, os olhares se comunicam com mais força e o ritmo do filme fica mais lento e denso. A lembrança ganha ainda mais obscuridade, Vera se sente sufocada e pouco conectada com o presente. O cinema ou o espectro Luiz absorve ela até acontecer uma última despedida – é preciso sair da sala de cinema para ter outra apropriação com o próprio filme e com a realidade.

É um remorso pleonástico – através de Vera já revigorada pela tragédia – Luiz não quer encarar a própria morte. Apesar de imerso em metalinguagem, Hoje (2011) não cai em jargões do gênero e se mantém mais interessante do que Pingo d’água (2014), que também tem a figura inspirada de Jean-Claude Bernardet (um dos roteiristas do filme) em propor essas interações sociais com a linguagem cinematográfica.

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Um dos auges da lembrança.

 

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O remorso é refletido.

A unidade de Hoje (2011) é impecável e se consagra como uma das obras do cinema brasileiro atual mais fundamentais e instigantes sobre um tema já tão explorado – é um revigor do contexto e mostra como algo que já foi tão vivido e dito pode trazer surpresas e condições sequer imagináveis.

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