Não são as Imagens

…que fazem o filme, mas a alma das imagens.

Categoria: Oscar 2016

Amy (2015)

by Não são as imagens

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Um talento desfalecido.

Uma adolescente tenta imitar Marilyn Monroe ao cantar “Happy Birthday to you” para uma amiga em uma festa de aniversário.  Amy Winehouse já na primeira cena do documentário Amy, dirigido por Asif Kapadia, mostra a que veio ao mundo, pena que sua passagem foi tão curta. O mote principal do filme é  a decadência de uma diva do jazz em ascensão, a frase que parece ser bem contraditória, na verdade reflete exatamente o que o filme traduz nas muitas imagens de arquivo pesquisadas pela produção.

O documentário segue em ordem cronológica, como é o costume de Kapadia – mesmo diretor do filme Senna. Começamos a descobrir Amy através da imagem de uma jovem londrina comum, com sonhos e aspirações correspondente à sua idade. A bulimia e a separação dos pais aparecem como situações problemáticas que só irão ser desenvolvidas ao final do filme.  Não sabemos ao certo o que leva a decadência de Amy, Kapadia explora, de forma inteligente, mas um tanto tendenciosa, os principais culpados pela morte de Amy – colocando-a em uma posição de uma jovem que “só queria ser amada”.

Ao descobrir o talento musical, ainda adolescente, Amy jamais acreditou que se tornaria uma cantora famosa, e completou: “Eu não quero ser famosa. Tenho certeza de que não aguentaria a pressão”, prevendo o futuro. A partir deste ponto a seguimos durante a sua primeira turnê, filmada pelo amigo e empresário na época Nick Shymansky, voz que aparece durante todo o longa. Vemos Amy cada vez mais certa da sua carreira e com um talento que só cresce. Todas as imagens são de bastidores e vídeos caseiros feitos por amigos. Em off, depoimentos dos colegas de trabalho, do empresário e da melhor amiga Juliette Ashby. A montagem surpreendente conecta imagens, falas e clipes de internet de forma tão inteligível que a naturalidade com o que o discurso se constrói é absurda. A pesquisa de arquivo e a montagem são a alma do documentário.

A construção da personagem “Amy” é negação da imagem da cantora que vimos estabelecida pela mídia quando ainda viva. No filme, Amy aparece como uma menina doce, necessitada de cuidado e afeto. Alguém que  repete incessantemente “sou uma fodida da cabeça”, alguém que estava pedindo socorro, desde sempre. A música aparece como forma de terapia. Em trechos do documentário, as letras surgem como recurso gráfico ao lado da cantora e dos seus cadernos rabiscados e escritos com poemas e canções que contam nada mais do que sua vida. A música lhe servia como válvula de escape para as loucuras do mundo.

Neste longa, percebemos duas fases da vida da cantora. O antes e o depois de seu relacionamento com Blake Fielder-Civil. O próprio Blake admite que introduziu Amy nas drogas mais pensadas. A cantora, que já sofria de sintomas típicos de depressão como a bulimia e alcoolismo, acaba se afundando ainda mais no crack e na cocaína. É no entanto, neste ponto, que a fama de Amy começa a crescer de fato. Afinal, o que seria mais interessante para os tabloides do que uma cantora drogada em ascensão? O número de shows triplica e suas músicas viram hits mundiais. Blake claramente se aproveita da fama da esposa para fazer o que quer. Enquanto Amy não consegue lidar com a fama e a música não se torna suficiente para acalmá-la. Nesta altura da narrativa, vemos outra Amy, esta que já conhecemos dos jornais. Aqui Kapadia coloca o contraponto: talvez Amy não soubesse lidar com a personagem que a mídia criou para ela. A cantora se apropria da percepção alheia sobre si.

Neste cenário de “aproveitadores”, vemos ainda Mitch, pai de Amy. Mitch tenta tirar vantagem da imagem da filha levando consigo sempre uma equipe de filmagem para registrar cada momento da vida da cantora, em troca de dinheiro? Amy chega a responder, em uma viagem que os dois fazem juntos com o intuito de se desintoxicar: “Pai, o que você quer é dinheiro? Eu te dou!”. Vemos uma Amy sensível e carente, com pouca noção de amor-próprio e uma capacidade autodestrutiva enorme. A mãe de Amy pouco aparece, deixo aqui esta pergunta: ela teria sido ausente durante toda a sua vida?

Após o fim do relacionamento com Blake a vida de Amy só piora. Mais drogas, mais álcool e menos amor. Amor que era o principal de suas músicas. Ficamos nos sentindo vulneráveis assim como cantora. Amy tinha noção dos anjos e dos demônios que a habitava, só não tinha noção dos demônios que estavam de fora dela. Em  Amy temos a metáfora existencialista expressa em uma única personagem: os conflitos, as dores e a impossibilidade de lidar com eles a não ser por meio da arte ou por meio das drogas, o escape da realidade. Quando ganha o Grammy, ela diz a amiga: “Juliette, isto é tão sem graça sem as drogas”.

Em uma leitura superficial Amy foi condicionada a sua morte por questões externas, por falta de condução adequada por parte do ex-marido ou do pai. Mas ao ver, cuidadosamente, as imagens da cantora e seus discursos, percebemos que, na verdade, era uma questão mais interna do que externa. Amy não soube lidar com seus outros “eus”, Amy era mais que uma, mas todas elas queriam atenção e, principalmente, amor.

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Bárbara Cabral – 24 anos –  recém-formada em Audiovisual pela Universidade de Brasília, flerta com o bom jornalismo. Atualmente é mestranda de Audiovisual pela UnB. Faz bico em produção cinematográfica e adora escrever. Autora do pouconormal.blogspot.com, onde publica micro-contos, poesia, crônicas e o que mais der na telha. Convidada pela equipe do Não São as Imagens.

A Grande Aposta (2015)

by Victor Cruzeiro

A Grande Aposta é o Melhor Filme do Oscar 2016. Sem dúvida.

Pronto, agora que eu consegui a sua atenção, vamos prosseguir. A Grande Aposta é um filme necessário, cuja necessidade é vinculada às virtudes pérfidas de Hollywood que transformam tudo em entretenimento.

Lidar com a nossa crise financeira mais recente é algo delicado, é doloroso e não é facilmente expresso no modo blockbuster. E não estamos falando da crise financeira de faz de conta que leva muitos governos a lamuriarem-se que “não temos dinheiro”. Estamos falando do estouro da bolha imobiliária de 2007, o colapso do mercado financeiro mundial, a partir de um ataque cardíaco fulminante no seu coração: Wall Street. Estamos falando de 8 milhões de desempregados, 6 milhões de sem teto, só nos Estados Unidos, enquanto pelo mundo nações iam à bancarrota para resgatar seus bancos e outras – tente Alemanha e Inglaterra – tinham suas projeções de PIB reduzidas em mais de 10%.

Parece chato, não é? Mas, acima de tudo, parece bastante assustador. E isso foi causado por um monte de caras que nós não sabemos o que fazem e, muito menos, quem são.

A Grande Aposta é uma denúncia desses poucos rostos e seus métodos, que foram corajosamente devidamente expostos pelo jornalista Michael Lewis, ex-funcionário do Salomon Brothers, um defunto banco onde também trabalhou o Lewis Ranieri, o ainda vivo criador de um dos grandes esquemas fraudulentos do capitalismo moderno: os títulos de hipoteca.

A história é muito complicada e cheia de termos complicados – um trunfo de toda arte que quer parecer inescrutável – mas que A Grande Aposta contorna dirigindo-se diretamente ao espectador e dizendo: “ok, nós sabemos que você não é tão burro assim, mas não custa explicar de uma maneira mais fácil”. A sex symbol Margot Robbie, o chef estadunidense Anthony Bourdain e a teen popstar Selena Gomez aparecem em momentos distintos para explicar o que está rolando naquele papo sobre subprimes, CDS, CDOs sintéticas.

Além disso, o filme – cuja história se desenrola em torno de quatro outsiders que previram o estouro da bolha com antecedência, e apostaram nela – é permeado de imagens fora do contexto do filme, mas dentro do contexto dos EUA. Os Irmãos Cara-de-Pau (John Landis, 1980) e Britney Spears, circa 2002, são alguns dos marcos da passagem de tempo pop fora das paredes de Wall Street.

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Margot Robbie foi Naomi, a esposa de Leonardo DiCaprio, em O Lobo de Wall Street (2013). Coincidência? Eu acho que não…

É como um encontro de Michael Moore e Terrence Malick, onde um zelo com a metafísica das imagens se une a um afã investigativo e sarcástico, altamente preocupado com o caminho de barbárie que esse nosso mundo segue. São fotos de iPhones, desabrigados e orgulhosos anônimos em frente a suas casas, que se amontoam, entre flashes que separam os atos do filme.

Quanto às personagens, temos quatro pessoas diferentes, que pouco ou nada sabem um do outro – afinal não é uma festa, é Wall Street! – cujas histórias e características se dissolvem em meio ao caos iminente. O que resta são seus traços mais proeminentes. O desbocado e amargo Mark Baum (Steve Carell) que parece querer lutar contra o sistema que o alçou até ali. O ambicioso narrador Jarred Vennett (Ryan Gosling), que só quer dinheiro. O desajeitado social Michael Burry (Christian Bale, com o único personagem que manteve o nome original), que só quer dinheiro. E o muito, bastante excêntrico ex-especulador Ben Hickert, um sombrio Brad Pitt que está curiosamente parecido com Michael Moore.

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Os bancos são personagens mais fortes do que os vividos por Carell e seus amigos. As instituições, Goldman Sachs, Bank of America, Deutsche Bank, ostentam todo o seu glamour e imponência. E, no fundo, o filme é sobre eles…

Mas eles não são importantes. Suas histórias passam pela linha de eventos que leva ao crash de 2007 como passam as fotos e vídeos entre os três momentos do filme. Eles não são o foco. São parte dele. Causa estranheza, portanto, a tentativa de adentrar na mente de Burry, talvez para dar um peso de protagonista a Christian Bale ou, ao menos, para criar uma identificação com seus fantasmas – ele tem um olho de vidro e se autodiagnosticou com Síndrome de Asperger.

Isso não funciona. Não há herois no filme. Desde o começo, os quatro personagens principais têm como objetivo lucrar apostando contra a economia americana, o que Hickert muito didaticamente lembra que é errado: “A cada 1% de desemprego, 40 mil pessoas morrem, vocês sabiam disso?”.

Não, eles não sabiam. E nem nós.

Adam McKay estreia seu primeiro drama depois de comédias como O Âncora (2004) e Os Outros Caras (2010), onde há sempre uma mordaz crítica sobre alguma ponta solta da sociedade estadunidense – e, portanto, do Ocidente. Essa sua grande aposta da vez, onde ele fez um filme considerado “esquerdista” por algumas críticas, é uma tentativa de expor ao público o que silenciosamente acontece atrás dos guichês dos bancos, desde que existem bancos. “Se as pessoas realmente voltarem a ficar bravas com isso, eu fico muito feliz!”, confessou o diretor à revista online Vulture.

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Adam Mckay e Steve Carell, com essa belísisma peruca. Uma boa tentativa de explicar o jargão do caos e tornar a desgraça, no mínimo, engraçada.

Mas é claro que, acima de tudo, as pessoas terão entretenimento. Torcerão para que Ryan Gosling consiga se dar bem, porque ele é bonitão e desenvolto. E comentarão como Brad Pitt está irreconhecível e engraçado com aquele cabelo e aquela barba. E talvez alguns se lembrem como tiveram um momento difícil com suas hipotecas em 2008. Ou nem isso.

A Grande Aposta é, sem dúvida, o Melhor Filme do Oscar 2016. E o fato dele estar no Oscar 2016 é seu calcanhar de Aquiles. A Academia o mantém lá, ironicamente, como um lembrete de que a história recente é digna de ser lembrada em um filme, e isso é tudo. Como um globo de neve que você traz de uma viagem inesquecível e deixa empoeirar na sua estante. Não levará o prêmio, muito provavelmente, pois não é tão impactante quanto Leo DiCaprio lutando contra um urso.

Seu entretenimento inevitável, seus grandes atores, sua narrativa cativante, deixam seu segundo plano… bom, em segundo plano. A revolta contra o sistema é amortizada pelos gritos de Steve Carell ou pelas constantes quebras da quarta parede – que são bem-intencionadas, mas são cinema demais em um momento em que se exige realidade.

Ainda assim, A Grande Aposta não deixa de ser uma necessária reflexão para o mainstream. “Não sei se podemos contar com isso”, observa McKay. É, Adam, nem nós. Infelizmente, nenhum de nós pode.

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O letreiro final do filme, com uma legenda auto explicativa em Caps Lock, como todo bom clamor. O filme mescla o documental, o experimental e a comédia para gerar consciência. Vejamos se ficará mais do que as lembranças de 2007.