Não são as Imagens

…que fazem o filme, mas a alma das imagens.

La obra del siglo (2015) – IV BIFF

by Thiago Campelo

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No final da década de 70, em Cuba, decide-se pela construção de uma usina nuclear, com total apoio da União Soviética, capaz de gerar energia para a ilha. Em 1980 inicia-se a construção do grande complexo nuclear e da cidade que daria base para o projeto no povoado de Jaguá, parte da baía Cienfuegos, região sul do país. Era o nascimento da “Ciudad Nuclear”.

Obviamente o projeto degringolou logo após o desmoronamento do bloco socialista deixando somente ruinas e frustrações na população da região. La obra del siglo (2015), segundo longa-metragem do cubano Carlos Quintela, parte especificamente dos reflexos, mais de 20 anos depois, do abandono do projeto mais importante já empreendido pelo governo de Cuba. No filme, Rafael (Mario Guerra), engenheiro formado pela URSS para trabalhar na usina, conversando com seu filho Leo (Leonardo Gascón), cita Fidel em seu discurso de 5 de setembro de 1992 dizendo “hubo hombres y mujeres que derramaron lágrimas, hasta la naturaleza lloró esa tarde, y yo les decía que la naturaleza podía llorar, pero que nosotros no podíamos llorar, excepto que fuera por patriotismo y por emoción…”; além disso, acrescenta que foi ele o primeiro de todos a chorar. É a inércia e a angustia gerada por esse abandono da Cidade Nuclear, que, por sua vez, guia toda a narrativa de La obra del siglo, esparramando-se sobre a análise de três gerações de homens de uma mesma família. São eles os já citados Rafael e seu filho Leo e o avô Otto (Mario Balmaseda).

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O filme inicia com um grupo de dedetização combatendo a praga de dengue que maltrata a região indo ao apartamento da família. Fala-se sobre os “bons tempos” de Guerra Fria e o desejo atual de despregar-se daquele lugar e largar-se no espaço ou bem qualquer outro canto que possibilite novas perspectivas. Otto, pouco mais a frente, apresenta os “fantasmas” da cidade que navegam pelo canal numa balsa pública: a professora de russo de seu filho, outro engenheiro formado fora do país, uma russa cantora, um realizador da TV Nuclear… Ele se pergunta, então, o que fez esse homem com todo o material filmado. O que se desenvolve logo depois é uma justaposição das imagens oficiais da construção da cidade e suas projeções no futuro. Os sonhos abandonados de um país são responsáveis, em grande medida, pela frustração das pessoas. Entre a propaganda estatal e a vida desses três personagens é que são criadas fissuras pelas quais se pode entender o que se passa entre os três homens que, imersos no torpor da cidade, não conseguem resolver seus dramas pessoais, o abandono dos sonhos antigos.

A mistura entre as imagens coloridas do passado e da medalha de ouro conquistada pelo pugilista Robeisy Ramírez, natural da Cidade Nuclear, nas olimpíadas de Londres em 2012 e o preto e branco da história de seus três protagonistas é uma forma evidente de comparação entre os desejos de Cuba de décadas atrás e o que realmente restou deles. Outro paralelo interessante que se desenha é a figura do peixe de estimação, Benjamin, posto num aquário cuja água turva e não oxigenada é um atrapalho na vida e a relação dessa família que se dá quase toda dentro de um apartamento.

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A construção desse preto e branco que, por vezes, dá pouquíssima informação carrega em si uma capacidade de reduzir cada quadro à sua essência. Juntamente com uma composição impecável entre figura e fundo que acertadamente estabelece uma relação dialética em cada plano – sobretudo quando se vê a sacada do apartamento e as ruinas da usina no horizonte. Lembra, especificamente nesse ponto, o bom trabalho de Alonso Ruizpalacios em Güeros (2014) e talvez uma herança da dupla Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll em 25 Watts (2001).

Para além desses aspectos, o filme se debruça bem sobre uma relação estritamente masculina; um reflexo, talvez, de certo tipo de defesa de um orgulho latino que também é trabalhado enquanto identidade do país. Há uma clara relação de poder quase intransponível entre Otto, Rafael e Leo que só é rompida por meio da força bruta. As figuras masculinas, em La obra del siglo são tão estanques quanto a cidade fantasma. A superação da amargura de cada um dos três personagens não é sequer apontada; não há nenhuma indicação, partindo deles mesmos, de que seus problemas sejam resolvidos. É uma espécie de manutenção do orgulho. Assumir que existem erros entre eles é se assumir menos homem. É proibido que chorem por mais que tenham medo, que sintam-se abandonados e desprovidos de alguma identidade.

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Tendo em vista que a Cidade Nuclear é um grande fantasma nacional esquecido pelo governo é que os espectros anunciados no início do filme surgem da maneira mais coerente possível: do nada. Ao lado da cama de Rafael está a professora de russo que lhe corrige a pronúncia das palavras, a cantora lírica que surge inesperadamente interpretando uma canção ou mesmo o dedetizador que transforma um prédio inteiro num lançamento de um foguete. O que numa camada epitelial de observação seria mero excesso sem sentido, por sua vez, encorpa ainda mais o discurso do desamparo dos sobreviventes do projeto abortado.

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La obra del siglo trabalha primorosamente sobre as reminiscências de um país e seu espelhamento na vida das três últimas gerações que viveram a sua derrocada. Quintela traduz bem as noções de carência e ruína física e emocional da cidade e de seus personagens, dando maior versatilidade a um cinema já bastante variado como o cubano.

23 30 – Una historia cautiva (2015) – IV BIFF

by Thiago Campelo

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O que se sabe e se entende pelos processos de imigração, grosso modo, é o que os grandes conglomerados de comunicação propagam. Via de regra, repete-se exaustivamente as inadequações dos estrangeiros ao modo de vida do país em destaque e os conflitos gerados por isso ou o aumento do desemprego e criminalidade causados pelo “altruísmo” desses países. Salvo os momentos onde é impossível a negação dos fracassos da humanidade, os grupos situados à margem do núcleo de nossa sociedade parecem estar condenados a um nível inferior numa suposta gradação da condição humana. A história do imigrante, sobretudo o sem documento, quase sempre fruto de um processo abusivo de colonização empregado pelos países que agora o recebem, é contada ainda por quem lhe abomina e não lhe rechaça oficialmente por comodismo.

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A Espanha é uma das maiores portas de entrada da Europa para imigrantes e a alcunha de “cão de guarda” do continente não é de agora. A política de combate à imigração ilegal adotado pelo país em confluência com todo o continente é repleta de falhas e sua execução é tomada por excessos que, volta e meia, tomam grandes proporções e dão as caras pelos noticiários. Reflexo do acordo de Schengen, de 1995, no qual se definiu como se desenvolveria a política migratória de toda a Europa, foram criados Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE na sigla espanhola) que fazem a vez de cárcere para imigrantes ilegais em processo de deportação. Oito destes centros encontram-se em território espanhol, e são constantemente alvo de denúncias de maus tratos e violação dos direitos humanos dos internos.

Una historia cautiva (2015), documentário de 70 minutos do espanhol David Marrades assume a tentativa de contar a mesma história no sentido reverso. Partindo dos relatos de três imigrantes ilegais em território espanhol, Murtada Seck, Samuel e Peggy Abiemwense, sobre sua estadia nos CIE. O documentário vai tecendo um panorama da violência e do racismo adotados pelo Estado espanhol no trato com os estrangeiros em seu território.

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Ao longo da narração de suas incursões nos CIE, no caso de Murtada e Samuel, e das indagações de Peggy, o documentário vai se construindo através de uma série de depoimentos de advogados, policiais, ativistas dos direitos humanos e pessoas ligadas diretamente à administração dos Centros. Apesar dessa estrutura, por vezes, servir como legitimadora de uma dualidade do conhecimento onde é necessária a presença de um especialista para confirmar e outorgar o discurso do “objeto” estudado, não é o que ocorre no filme. Tirando figuras como o chefe de polícia que serve como contrapeso necessário no documentário, as falas dos espanhóis que assumem os papéis de peritos do tema são mais relatos de histórias semelhantes e de suas experiências a partir do seu envolvimento com os processos de imigração. De fato, são Peggy, Murtada e Samuel que detém a condução da parte mais interessante do filme e, através de suas histórias de vida é possível desenhar de fato um panorama do racismo e da xenofobia espanhola manifesta nas batidas policiais exclusivas para imigrantes.

No entanto, o documentário peca por se afastar deles, sobretudo de Peggy, por tempo demais – apesar dos curtos 70 minutos. Acontece que, em alguns momentos os CIEs – por mais que sejam eles a principal forma de “punição” ao imigrante – tomam destaque demais. Outro quesito é a trilha sonora quase sempre presente que tende a um condicionamento muito melodramático do filme, ressaltando até demais o drama da imigração.

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Una historia cautiva é um filme que tangencia bem algumas das condições sob as quais são submetidos a maioria dos imigrantes em território europeu e não só espanhol. Seu maior mérito é contar com os relatos de quem sofreu na pele e por causa dela demonstrações de violência. Porém, é importante ressaltar que, acima de tudo, é um filme que levanta uma série de questionamentos sobre um ponto tão complexo e urgente como esse.