Não são as Imagens

…que fazem o filme, mas a alma das imagens.

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Aquarius (2016)

by Gustavo Menezes

soniaNuma das primeiras cenas de Aquarius, Clara (Sônia Braga) concede uma entrevista na qual explica os motivos para ainda manter em casa tantos discos de vinil, em plena era digital. Além das músicas, como ela expõe, cada disco possui uma história relacionada ao local e à forma como foi adquirido, a cada desgaste da capa, a cada texto do encarte. O diálogo é fundamental para entender Clara e o espírito do filme. Ela reconhece, em boa medida, estar obsoleta aos olhos do mundo moderno, mas se nega a se adaptar.

Por pensar dessa forma, Clara se recusa a vender seu apartamento no edifício Aquarius, em Recife, onde viveu a maior parte da vida. O problema é que o edifício inteiro já está desocupado, e uma construtora, na pessoa de Diego (Humberto Carrão), a pressiona constantemente para que, realizada a venda, possam dar início à construção do “Novo Aquarius” o mais rápido possível.

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Nesse embate, é interessante observar como se diferenciam os pensamentos do “jovem” Diego e da “velha” Clara: enquanto ele defende a substituição do velho pelo novo, como se “novo” fosse necessariamente sinônimo de “melhor” (“o novo pelo novo”), ela reconhece na manutenção do velho a permanência da memória não apenas física mas também emocional e informativa que cada objeto e cada lugar possui, que pode variar de pessoa a pessoa.

Se para Clara o apartamento traria, digamos, a memória do aniversário de Tia Lúcia (Thaia Perez) que abre o filme, para a própria tia a cômoda da sala traz as memórias indizíveis das transas que ela experimentou sobre o móvel; assim como ler a dedicatória de um livro traz memórias para acalmar os ânimos de Ana Paula (Maeve Jinkings); e o próprio corpo de Clara traz numa chamativa cicatriz a memória do câncer a que ela sobreviveu.

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E o filme trabalha para que o espectador se identifique com Clara, em oposição ao hermético O Som ao Redor (2012). Mas a protagonista não deixa de ser complexa: idosa, independente, mãe, avó, mas também dotada de sexualidade, de fortes convicções e senso de moral. E, por isso mesmo, disposta a lutar para permanecer no lar que a abriga fisica e mnemonicamente há mais de três décadas.

Seu apartamento, além de ser o único habitado do prédio, é também o único imbuído de familiaridade: é o espaço que ela habita há mais de 30 anos, do qual conhece de cor as paredes, os quadros, o piso, a organização e a história de cada disco; e no qual seu netinho pode brincar e correr nu. E é deste espaço que seus antagonistas querem tirá-la. Nesse sentido, o filme é diametralmente oposto a Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015), em que os personagens desejam sair dos ambientes em que vivem; locais inóspitos como caminhões e currais, mas que são uma espécie de lar forçado onde se dão, desconfortavelmente e sem privacidade, todos os seus atos íntimos.

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O interesse do diretor Kleber Mendonça Filho pela memória das pessoas e dos espaços vem desde seu primeiro curta, Paz a Esta Casa (1994), e aqui é retomado juntamente com as análises das relações entre classes sociais, mais uma vez pela figura onipresente da empregada doméstica (que está também nos excelentes Recife Frio (2009) e O Som ao Redor. Neste filme, elas aparecem nos álbuns de família, com os rostos parcial ou totalmente ocultos, e muitas vezes sem que seus nomes sejam recordados pelos observadores das fotos; e mais notadamente num marcante pesadelo de Clara.

As discussões – velho contra novo; memória e história dos espaços – tomam proporção maior pelo fato de o filme se passar em Recife. Há cerca de três anos o projeto do Novo Recife (que visa justamente demolir partes históricas da cidade para construir torres residenciais e comerciais) vem enfrentando a resistência do movimento Ocupe Estelita, no qual colabora boa parte da equipe de Aquarius, com a produção de curtas coletivos como Recife, Cidade Roubada (2014) e Cabeça de Prédio (2015).

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Tal qual os idealizadores do Novo Recife, Diego vê os espaços de forma simplória, como propriedade a ser ocupada, comercializada ou demolida, visando sempre o lucro (ele pode ser jovem, mas sua visão de mundo não o é). Mas todo espaço, como todo objeto, tem muitas camadas além da utilitária/mercadológica; camadas ligadas à emoção, à história, à memória de cada indivíduo.

Assim, dizer que Aquarius é um filme político por conta do protesto de sua equipe no Festival de Cannes deste ano é não só reconhecer a validade de sua tese central – os objetos adquirem novas camadas e significados diferentes para cada indivíduo (para uns, um filme a ser rejeitado como produto do “esquerdismo”; para outros, a ser exaltado como símbolo de resistência) -, mas atestar que absolutamente tudo tem várias camadas, entre as quais uma política, mesmo a mais inocente história infantil, o mais formulaico filme de ação ou uma foto num álbum de família. E essas camadas possuem outros valores que nem sempre têm preço.

A Luneta do Tempo (2014)

by Gustavo Menezes

A Luneta do Tempo, estreia de Alceu Valença na direção, chegou aos cinemas brasileiros em 2016, dois anos depois de pronto. Nada diferente do grosso da produção independente nacional, que é relegada geralmente ao circuito de festivais e, com sorte, lançada comercialmente numa quantidade ínfima de cinemas.

Da mesma forma, as culturas regionais do país estão cada vez mais relegadas a nichos. Isso talvez explique uma certa quantia de rejeição por parte do público que chegou a ver a Luneta. Os temas de que a obra trata, por mais que se tenha uma noção geral do que foi o cangaço, do que é a literatura de cordel ou da região em que se passa a ação, não são de conhecimento amplo.

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Alceu, como era de se esperar, domina os assuntos que aborda. Músico e poeta talentoso, ele incorporou o cordel a seu roteiro de forma pouco usual: Não apenas os diálogos são versificados e rimados à sua moda, como a própria ordem de cenas e acontecimentos segue uma falta deliberada de linearidade. A impressão que se tem é que de fato o filme saiu de um cordel, já que há saltos no tempo que não se justificam pelo desenvolvimento da trama, parecendo inventados ao gosto do poeta.

A trama principal se passa em duas épocas: 1938, beirando o massacre de Angicos que iniciou a derrocada do cangaço, e meados dos anos 60. Na primeira, apresentam-se o cangaceiro Severo Brilhante e o militar Antero Tenente, dois rivais que duelarão no clímax da primeira parte, culminando na morte do primeiro e, finalmente, nas mortes de Lampião e Maria Bonita. Também entra em cena Nagib Mazolla, dono de um circo mambembe que está passando pela região.

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Na segunda época, o filho de Severo e o filho de Antero se tornarão rivais – este, também militar; aquele, artista circense entusiasta do cangaço. O que os dois não sabem é que são, na verdade, irmãos por parte de pai: o dono do circo, amante secreto das duas mães.

Essa consanguinidade entre os oponentes ganha contornos ainda mais interessantes quando os dois reencenam, num espetáculo de circo, o duelo entre seus “pais”. O artifício não serve tanto para questionar as representações do cangaço ou da polícia, mas sim para ligar as duas épocas por rimas visuais e pelo próprio destino do “homem do sertão”, sempre sujeito à violência, à morte inesperada. Ao que parece, condenado pelo próprio sangue à tragédia, pois tanto o conflito real como o encenado resultam em morte verdadeira.

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Entrecortando a trama dos dois irmãos, entra a vida após a morte de Lampião e Maria Bonita, imaginada por um cordelista da cidade. É aí que se apresenta a tal luneta do tempo, por meio da qual Lampião olha para o passado. Essas cenas concentram-se na relação romântica do casal, com direito a corridinha em câmera lenta, chuva de pétalas, troca de olhares abobalhados e mesmo flertes com o musical. Sobra para Hermila Guedes, que não tem muito a fazer além de sorrir e olhar apaixonada para Irandhir Santos. Ele pelo menos tem outras facetas de Lampião para explorar.

Assim, as duas porções reais do filme se intercalam com as duas imaginárias – da fabulação sobre a vida no além e da encenação circense do duelo real. Essas últimas bebem nas representações populares do cangaço e de seus mitos que até hoje são feitas no nordeste. Alguns dos mais célebres folhetos de cordel versam mesmo sobre o paradeiro de Lampião após sua morte. O clássico de José Pacheco, A Chegada de Lampião no Inferno, conclui que o bandoleiro não conseguiu abrigo nem no céu nem no inferno: por certo está no sertão.

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Há também momentos no filme que indicam uma espécie de transe visual, com a câmera em devaneio pelas locações, passando, em cortes rápidos, pela aridez do sertão ou pelo cenário exuberante de Nova Jerusalém, maior teatro a céu aberto do mundo. A escolha do teatro não foi por acaso: nele foi rodado o também cordelesco A Noite do Espantalho (Sergio Ricardo, 1974), filme em que um jovem Alceu Valença interpreta o papel-título, em sua estreia no cinema.

Nota-se uma inspiração temática no filme de Sergio Ricardo, embora Alceu seja menos ousado esteticamente. Enquanto A Noite do Espantalho é carregado de figurinos imaginários que servem de metáfora ou remetem às mitologias do cordel e do sertão, A Luneta busca sempre o realismo. Mesmo assim, o trabalho da arte é louvável pelo apuro estético: as roupas e os adereços dos cangaceiros fogem do bege onipresente nas produções do gênero, apresentando um pouco das cores da estética riquíssima do cangaço, que se somam às cores do circo.

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Da mesma forma, não falta criatividade à ótima trilha sonora, toda a cargo de Alceu Valença. As canções misturam os tradicionais versos de cordel e aboios ao som pesado, com letras ora simples que chamam as moças para ver o circo ou falam de amor, ora reivindicam a atenção da classe política aos problemas da região, ora movem a narrativa.

Entre erros e acertos, A Luneta do Tempo é, sem dúvida, um exemplar interessante do tratamento do cangaço e da incorporação do cordel à linguagem no cinema brasileiro. Quem sabe, se tivesse uma distribuição decente, ele não fosse responsável por uma revitalização do filme de cangaço?