Não são as Imagens

…que fazem o filme, mas a alma das imagens.

Tag: 2015

Filmes brasileiros essenciais das décadas de 2000 e 2010 para entender a arte de atuar

by Gustavo Fontele Dourado

Com o cinema brasileiro em expansão na década de 2000 e novos meios de produção amadurecidos ou em descoberta na década de 2010, o nosso cinema apresentou cada vez mais a busca pela competência na direção de atores ou captar a qualidade, seja em diferentes métodos ou expressões, na direção do elenco e na interpretação das personagens. Esta lista cita marcos dos últimos 16 anos na arte de atuar na cinematografia brasileira.

Estorvo (2000)

Estorvo

Jorge Perugorría transmite paranóia e a superficialidade do meio social artístico como poucos. Herda a erudição de vida que Ruy Guerra tem com o elenco e a profundidade narrativa de Chico Buarque neste filme.

O Auto da Compadecida (2000)

O auto da compadecida

Um filme que faz uma intertextualidade entre três veículos de atuação: cinematográfica, teatral e novelesca. O que une e faz a síntese disso é o ser engraçado, a comédia e o hilário. A qualidade que os diálogos ganharam não deixa a desejar do texto original.

Oriundi (2000)

Oriundi

Uma das últimas interpretações do lendário Anthony Quinn. Caso em que o protagonista se destaca muito mais que o filme e do restante do elenco.

Lavoura Arcaica (2001)

Lavoura arcaica

Sua forma onírica de interpretações marcou para sempre o cinema brasileiro, porém é uma escola pouco praticada e difícil de ser seguida.

Bicho de Sete Cabeças (2001)

Bicho de sete cabeças

A entrega é a marca do filme, o esforço de um ator para ir além do que ele poderia fazer normalmente. A cena do eletrochoque é impactante devido ao preparo perspicaz antes de atuar – o que traz a agonia suprema é a espera usada como técnica.

Domésticas (2001)

Domésticas

Com simplicidade nas interpretações, o filme impacta mais do que se tivesse construções cênicas mirabolantes e com pretensões herméticas.

Madame Satã (2002)

Madame Satã

Um dos melhores filmes sobre uma pessoa histórica, a potência de Lazaro Ramos foge de vários clichês de filmes biográficos. Sua atuação foge das regras e dos lugares-comuns que muitas vezes um gênero fílmico impõe.

Cidade de Deus (2002)

Cidade de Deus

A preparação de atores e essa forma de trabalhar com um preparador específico ganhou grande propulsão com o sucesso desse filme. Pena que muito do elenco não foi aproveitado em outros projetos. Muitas carreiras começaram e terminaram em Cidade de Deus.

33 (2002)

33

O tom de busca e pesquisa cômica com toques experimentais permeia 33. Colocar-se em uma obra ou produto com eficácia e convicção é um desafio – a ordem aqui é se auto-interpretar.

Narradores de Javé (2003)

Narradores de javé

Inspirou muitos filmes com seu toque de intimidade e construção burlesca. Algumas vezes os diálogos usam frases de efeito para transmitir críticas.

Carandiru (2003)

Carandiru

Uma das obras que mais trabalham memória afetiva e história pregressa. O material humano aqui é a prioridade para trabalhar as técnicas de atuação. Será receptivo para quem gosta de Stanislavski e as aplicações competentes de Babenco.

Nina (2004)

Nina

Moderniza o gênero de terror no Brasil, os personagens precisam ser sufocados e a apreensão é o que não faltará em suas expressões. Os corpos jogam sempre classificações e julgamentos.

Olga (2004)

Olga

A dor e o sofrimento são palavras-chave na interpretação de Camila Morgado. O filme ganha uma forma séria e o que é humano se torna áspero por causa dos objetivos das personagens sempre em conflito.

O Outro Lado da Rua (2004)

O outro lado da rua

Com várias referências a Janela Indiscreta (1954), o elenco mostra domínio da técnica e ainda passa nostalgia e expectativas.

O signo do caos (2005)

O signo do caos

Sganzerla nos lembra que há outros mundos de atuação e não apenas Stanislavski que é o mais procurado método no cinema ocidental e industrial. Artaud e Grotowski podem ser muito cinematográficos.

Casa de Areia (2005)

Casa de areia

Um dos pontos altos de Fernanda Montenegro e Fernanda Torres – a combinação é imperdível e mostra como pessoas próximas entre si na vida real podem causar impacto nas interpretações.

Serras da Desordem (2006)

Serras da desordem

Filme que demonstra a possibilidade concreta da atuação ser um exercício etnográfico, ora consciente ora inconsciente.

O Céu de Suely (2006)

O céu de suely

A figura central é o que compõe a obra inteira: uma construção de persona clássica nos filmes que funciona muito bem e não esvazia o frescor do filme de Karim.

Jogo de Cena (2007)

Jogo de cena

A atuação no espaço reflexivo e da palavra contada. A performance no documental e no relato.

Saneamento Básico (2007)

Saneamento básico

Faz ironias com o preconceito através do deboche e sem cair no pastelão. Um dos melhores filmes metalinguísticos do Brasil. O texto é bem dito e conduz grande parte do humor, o elenco ajuda na construção coletiva com o diretor.

A casa de Alice (2007)

A casa de alice

Diálogos muito “naturais” e que não traz belíssimas frases no sentido de ser uma citação para ser anotada em grandes livros. Uma das melhores obras sobre o cotidiano e sem o marasmo de vários outros filmes desse gênero.

Se nada mais der certo (2008)

Se nada mais der certo

A obra tem a personagem Marcim que possui uma das melhores transformações de semblante e de interpretação em todo o cinema brasileiro. Belmonte fez assim mais do que o muito bom com a atriz.

Filmefobia (2008)

Filmefobia

O tom de reflexão sobre o próprio cinema causa estranheza e os corpos em agonia.

Insolação (2009)

Insolação

As interpretações são assumidamente mais rígidas, porém isso é executado magnificamente. O texto deve ser dito com beleza e expressa o quanto são travadas essas pessoas que prendem suas expressões por sua falta de flexibilidade.

Os Famosos e os Duendes da Morte (2009)

Os duendes da morte

O tom de mistério e solidão passados por um ator adolescente. As imagens da madrugada nunca estiveram tão atrativas desde Noite Vazia (1964). Sua interpretação capta bem o jeito dos usuários da internet com tédio e com o desejo, muitas vezes não realizado, de se encontrar na vida.

Transeunte (2010)

Transeunte

O ator no ápice da contemplação, a serenidade é uma máscara que encoberta muito do monstro interno do protagonista. O ator ultrapassa também a maioria dos elementos deste filme – ele é o melhor da obra.

Reflexões de um liquidificador (2010)

Reflexões de um liquidificador

Herdeiro espiritual do Cheiro do Ralo (2007), suas interpretações carregam muito do humor negro e da ironia.

Corações sujos (2011)

Corações sujos

A possibilidade de um diretor brasileiro comandando atores estrangeiros e de uma cultura muito diferente. O ar melancólico e violento do elenco é um primor.

Trabalhar cansa (2011)

Trabalhar cansa

Renova a forma de captar apreensão, mistério e enigmas. As relações entre os atores é movida pela praticidade, pelo que vai ser trocado e oferecido.

Heleno (2011)

Heleno

Talvez a melhor cinebiografia dos últimos anos, mostra novamente a entrega de Santoro com seus papeis. Além de aproveitar a bela fotografia da obra para ressaltar ainda mais as suas expressões.

Hoje (2011)

Hoje

Exemplo de como um profissional da atuação pode se superar e fazer outro gênero de filme. A atriz principal fez muita comédia e com Hoje, ela encarna um dos dramas mais simbólicos do país.

O Som ao Redor (2012)

O som ao redor

As pessoas que aparentemente são ordinárias são na verdade muito complexas e as interpretações trazem muito desse aspecto. Todos tem imaginários ricos.

Educação sentimental (2013)

Educação sentimental

Bressane praticamente tem um estilo único de executar monólogos no cinema. Mesmo que não agrade muita gente.

Flores Raras (2013)

Flores raras

Nota-se o histórico diferente das duas atrizes principais contracenando, uma aula de co-produção no sentido de atuar.

Para minha amada morta (2014)

Para minha amada morta

Os corpos tensos que parecem que vão liberar grande quantidade de energia violenta. É a interpretação contida, a busca pela concentração de um objetivo apesar da vontade que pode sufocar as ações.

Praia do Futuro (2014)

Praia do futuro

O efeito catártico desse filme é profundo – o abandono de laços afetivos e o reatar deles. A alteridade da obra é muito relevante.

Branco Sai, Preto Fica (2014)

Branco Sai Preto Fica

Fazer uma interpretação de si mesmo para criar uma fábula política muito criativa através das memórias e dos acontecimentos trágicos do passado. O carisma e o tom de deboche como arma política.

Hoje eu quero voltar sozinho (2014)

Hoje eu quero voltar sozinho

Filme que trouxe como poucos no seu elenco o retrato da juventude e dos seus afetos com comoção e prender o espectador em desejar o sucesso das suas personagens queridas.

Que Horas Ela Volta? (2015)

Que horas ela volta

Marco recente da atuação brasileira no âmbito internacional, além de trazer uma atriz veterana que muito trabalhou na TV de volta ao cinema com força máxima – Regina Casé. E um belo trabalho de pesquisa de Camila Márdila.

Big Jato (2015)

Big jato

Matheus praticamente se tornou o Peter Sellers brasileiro com esses papéis multifacetados e contrastantes em Big Jato.

Fome (2015)

Fome

Bernardet no seu auge como ator e por desafiar sua história de vida.

O Olmo e a Gaivota (2015)

O olmo e a gaivota

Superou Elena (2012), que já trazia formas e articulações ricas, para mostrar a voz de uma atriz e o seu papel nos filmes e no social.

Mundo Cão (2016)

Mundo cão

Atuações frenéticas que caem muito bem nesta película que propõe um suspense com comédia.

Aquarius (2016)

Aquarius

O talento nato de Sônia Braga acumulado e guardado por não interpretar em um filme por vários anos é enriquece esta obra que promete continuar muito comentada.

Amy (2015)

by Não são as imagens

amy_doc png

Um talento desfalecido.

Uma adolescente tenta imitar Marilyn Monroe ao cantar “Happy Birthday to you” para uma amiga em uma festa de aniversário.  Amy Winehouse já na primeira cena do documentário Amy, dirigido por Asif Kapadia, mostra a que veio ao mundo, pena que sua passagem foi tão curta. O mote principal do filme é  a decadência de uma diva do jazz em ascensão, a frase que parece ser bem contraditória, na verdade reflete exatamente o que o filme traduz nas muitas imagens de arquivo pesquisadas pela produção.

O documentário segue em ordem cronológica, como é o costume de Kapadia – mesmo diretor do filme Senna. Começamos a descobrir Amy através da imagem de uma jovem londrina comum, com sonhos e aspirações correspondente à sua idade. A bulimia e a separação dos pais aparecem como situações problemáticas que só irão ser desenvolvidas ao final do filme.  Não sabemos ao certo o que leva a decadência de Amy, Kapadia explora, de forma inteligente, mas um tanto tendenciosa, os principais culpados pela morte de Amy – colocando-a em uma posição de uma jovem que “só queria ser amada”.

Ao descobrir o talento musical, ainda adolescente, Amy jamais acreditou que se tornaria uma cantora famosa, e completou: “Eu não quero ser famosa. Tenho certeza de que não aguentaria a pressão”, prevendo o futuro. A partir deste ponto a seguimos durante a sua primeira turnê, filmada pelo amigo e empresário na época Nick Shymansky, voz que aparece durante todo o longa. Vemos Amy cada vez mais certa da sua carreira e com um talento que só cresce. Todas as imagens são de bastidores e vídeos caseiros feitos por amigos. Em off, depoimentos dos colegas de trabalho, do empresário e da melhor amiga Juliette Ashby. A montagem surpreendente conecta imagens, falas e clipes de internet de forma tão inteligível que a naturalidade com o que o discurso se constrói é absurda. A pesquisa de arquivo e a montagem são a alma do documentário.

A construção da personagem “Amy” é negação da imagem da cantora que vimos estabelecida pela mídia quando ainda viva. No filme, Amy aparece como uma menina doce, necessitada de cuidado e afeto. Alguém que  repete incessantemente “sou uma fodida da cabeça”, alguém que estava pedindo socorro, desde sempre. A música aparece como forma de terapia. Em trechos do documentário, as letras surgem como recurso gráfico ao lado da cantora e dos seus cadernos rabiscados e escritos com poemas e canções que contam nada mais do que sua vida. A música lhe servia como válvula de escape para as loucuras do mundo.

Neste longa, percebemos duas fases da vida da cantora. O antes e o depois de seu relacionamento com Blake Fielder-Civil. O próprio Blake admite que introduziu Amy nas drogas mais pensadas. A cantora, que já sofria de sintomas típicos de depressão como a bulimia e alcoolismo, acaba se afundando ainda mais no crack e na cocaína. É no entanto, neste ponto, que a fama de Amy começa a crescer de fato. Afinal, o que seria mais interessante para os tabloides do que uma cantora drogada em ascensão? O número de shows triplica e suas músicas viram hits mundiais. Blake claramente se aproveita da fama da esposa para fazer o que quer. Enquanto Amy não consegue lidar com a fama e a música não se torna suficiente para acalmá-la. Nesta altura da narrativa, vemos outra Amy, esta que já conhecemos dos jornais. Aqui Kapadia coloca o contraponto: talvez Amy não soubesse lidar com a personagem que a mídia criou para ela. A cantora se apropria da percepção alheia sobre si.

Neste cenário de “aproveitadores”, vemos ainda Mitch, pai de Amy. Mitch tenta tirar vantagem da imagem da filha levando consigo sempre uma equipe de filmagem para registrar cada momento da vida da cantora, em troca de dinheiro? Amy chega a responder, em uma viagem que os dois fazem juntos com o intuito de se desintoxicar: “Pai, o que você quer é dinheiro? Eu te dou!”. Vemos uma Amy sensível e carente, com pouca noção de amor-próprio e uma capacidade autodestrutiva enorme. A mãe de Amy pouco aparece, deixo aqui esta pergunta: ela teria sido ausente durante toda a sua vida?

Após o fim do relacionamento com Blake a vida de Amy só piora. Mais drogas, mais álcool e menos amor. Amor que era o principal de suas músicas. Ficamos nos sentindo vulneráveis assim como cantora. Amy tinha noção dos anjos e dos demônios que a habitava, só não tinha noção dos demônios que estavam de fora dela. Em  Amy temos a metáfora existencialista expressa em uma única personagem: os conflitos, as dores e a impossibilidade de lidar com eles a não ser por meio da arte ou por meio das drogas, o escape da realidade. Quando ganha o Grammy, ela diz a amiga: “Juliette, isto é tão sem graça sem as drogas”.

Em uma leitura superficial Amy foi condicionada a sua morte por questões externas, por falta de condução adequada por parte do ex-marido ou do pai. Mas ao ver, cuidadosamente, as imagens da cantora e seus discursos, percebemos que, na verdade, era uma questão mais interna do que externa. Amy não soube lidar com seus outros “eus”, Amy era mais que uma, mas todas elas queriam atenção e, principalmente, amor.

amy-winehouse-filme png

_______________________________________

Bárbara Cabral – 24 anos –  recém-formada em Audiovisual pela Universidade de Brasília, flerta com o bom jornalismo. Atualmente é mestranda de Audiovisual pela UnB. Faz bico em produção cinematográfica e adora escrever. Autora do pouconormal.blogspot.com, onde publica micro-contos, poesia, crônicas e o que mais der na telha. Convidada pela equipe do Não São as Imagens.