American Sniper (2014)

by Não são as imagens

O filme não abre com uma cena de ação, explosões, gritos nem nada do tipo. O foco desde o início não é a ação mas sim o silêncio real de uma guerra, a desilusão, a falta de sentido diante de tanta crueldade. Distante disso tudo, observando como um vouyer está Chris Kyle (Bradley Cooper), o sniper, que como um Deus que decide quem vive e quem morre julga os atos de seus inimigos e atinge a todos que agirem diferente de seu gosto com sua ira divina. O filme se passa no período da guerra contra o terror, iniciadas com o atentado às torres gêmeas em 2001. O fato de o gênero desse filme pender mais para o drama do que para a ação mostra a seriedade do tema pois afinal a guerra é uma coisa horrível e não uma batalha épica do bem contra o mal. O fato de ser um drama ajuda na imersão no personagem de Chris que vai pouco a pouco se desumanizando e se tornando um robô patriota, sem motivações ou defeitos infantis de filmes de ação e de romance. Chris não é um moleque que possui questões mal-resolvidas de infância e não sabe como ser um líder nem tem medo de seguir dentro de um relacionamento, nada desse tipo de baboseira clichê dos “heróis” hollywoodianos. Bem pelo contrário, ele é um homem completo e vai pouco a pouco se tornando essa personagem irresponsável e desfuncional, inapta a liderar e a se envolver, conectar, emocionalmente. A beleza do filme está justamente aí, no fato de ele ser pleno e a circunstância fazer emergir dele todo tipo de dificuldade por conta da crueldade da guerra, tornando ele muito mais humano por isso.

First blood! As primeiras vítimas de Chris. Primeiro a criança depois a mãe.

First blood! As primeiras vítimas de Chris. Primeiro a criança depois a mãe.

O roteiro é muito bom, cria-se essa progressão na desconstrução de Chris de uma maneira muito real. No início Chris é um homem sem rumo, sem propósito, sem fé, até que a guerra surge para ele, no momento em que ele está com um relacionamento acabado, sem emprego e trinta anos na cara. Uma última oportunidade talvez, um salto de fé, leap of faith, para fugir do fracasso iminente. Entra no exército e as coisas começam a melhorar, ele conhece uma nova mulher, Taya (Sienna Miller). Começa a se destacar como atirador de elite, coisa que ele já sabia que era bom desde criança quando caçava com seu pai. Tudo parece estar indo bem até que ela surge, a guerra. Chris finalmente tem a oportunidade que queria, de ser útil, de ainda ter um propósito nesse mundo, de fazer algo de valor, servir ao seu país. No campo de batalha, no entanto, a primeira vítima dele é uma criança, e daí em diante o filme se torna um belo retrato do que os soldados sentem ao ir para a guerra. Where are the bad guys? Onde estão os bandidos? De máscaras pretas, bigodes compridos, com planos para dominar ou destruir o mundo? Eles não estão lá. No campo de batalha só se vêem pais de família, mulheres, crianças, inocentes. Chris, voltando à analogia do início do texto, se sente um Deus com seu rifle, julgando os justos e injustos, deixando cair sobre esses últimos a sua cólera mortal. No entanto, diferente de Deus, Chris não sabe quais são de fato os injustos e se ele cometer um erro de julgamento pode se tornar um criminoso. A descostrução começa aí porque ele não se alistou para matar crianças nem mulheres, se alistou para pegar os terroristas que ameaçam destruir o país que ele ama. Ele é bom como atirador de elite mas a responsabilidade e o fardo de uma vida humana que ele não sabe se deve tirar ou não é demais para ele, então ele desce dos céus e volta a ser um homem, abandona o rifle e vai para a linha de frente. Sua vida fora da guerra com sua esposa Taya está problemática pois Chris está desiludido. A guerra não está ajudando ele a atingir seu propósito, ser útil, salvar vidas, mesmo que o considerem um herói ele não se sente um herói. Sua jornada é pessoal demais, ele não consegue dividir esse fardo com sua esposa e se torna completamente distante de sua família. A única coisa que ele consegue compartilhar com Taya são suas próprias falácias, que ele está protegendo o país, coisa na qual talvez nem ele acredite.

Mustafa, o sniper inimigo que retrata praticamente uma sombra de Chris, um antagonista pleno.

Mustafa, o sniper inimigo que retrata praticamente uma sombra de Chris, um antagonista pleno.

Surge um atirador de elite nas linhas inimigas, tão habilidoso quanto ele próprio, como uma força sobrenatural, um outro deus que julga os atos dele e de seus amigos que ele só pode derrotar tornando-se um deus novamente. Chris resiste e prefere continuar atrás do seu objetivo, o mandante dos terroristas, o Açougueiro, ignorando o atirador de elite. Persegue o Açougueiro, perde companheiros, afasta-se cada vez mais de sua família, obcecado, seu título de herói permite que ele consiga certas coisas mas ele começa a bater de frente com superiores. Vem então uma ordem de cima exigindo que o atirador de elite das linhas inimigas seja morto e para tal Chris precisa subir para os céus novamente e o enfrentar em pé de igualdade. Abandonado por seus superiores, por sua família, agora apenas com sua habilidade de atirador de elite para o salvar, Chris dá seu último salto de fé e mata seu rival. Depois disso seu regimento inteiro precisa fugir da fúria de seus inimigos sem fim e da tempestade de areia que os cega, ficar ali é morte certa. Como uma fúria divina do deus morto ou como a clássica cena onde o castelo do vilão desmorona depois deste ser derrotado Chris se vê correndo para segurança deixando tudo para trás, toda sua divindade, retornando um homem. Mesmo depois de estar são e salvo em sua casa com sua família a guerra continua dentro dele. Para que a guerra não o leve por completo Chris precisa se afastar de vez dela, coisa que ele não consegue, e assim ela o leva finalmente.

Chris, finalmente de volta em casa.

Chris, finalmente de volta em casa.

A direção de Clint Eastwood, como em “Gran Torino” (2008), tratam a guerra como uma questão particular de cada pessoa afetada por ela, onde a guerra sempre destrói e deixa feridas profundas. Como em “Gran Torino” o protagonista é um homem atormentado não necessariamente pela guerra mas pela culpa por seus atos, que deveriam ser nobres e justificáveis mas não são. A jornada se torna então desfazer o ato, lavar a culpa, restaurar o equilíbrio interno às custas de negligenciar todo o resto, a família, o amor, nada mais tem importância. Os personagens se humanizam ao se desumanizar, ao invés de construir valores positivos ao longo da narrativa eles tem os poucos valores positivos destruídos um a um até sobrar apenas a violência para transmitir todos os sentimentos. A redenção vem através da restauração do equilíbrio que permite que eles se permitam morrer, a obrigação de soldado, de patriota, antes para um país agora para uma decisão errada, acabou. Assim eles morrem, como homens que conseguiram voltar a acreditar em si próprios depois de perder a fé em tudo. Essa é a beleza dos filmes de Eastwood. Geralmente filmes de guerra, em especial os que vão para a concorrência do Oscar, são tendenciosos e puxam sempre uma sardinha para a tragédia. Da mesma forma que filmes nacionais que querem forçar a barra em festivais de cinema abordam a ditadura militar puxando a sardinha para a tragédia também. O objetivo nas duas situações é o mesmo, ser premiado não pelo mérito do filme, da técnica, nada disso, mas puramente pelo fato que é importante lembrar das tragédias. Este crítico não quer insinuar que as tragédias do mundo não devem ser retratadas, porque elas devem! O problema é usar a tragédia como pretexto para validar a obra, de maneira que sem a tragédia no pano de fundo da narrativa o filme se torna completamente vazio. Existem muitos filmes que retratam as tragédias como tragédias e são válidos enquanto obras, e este filme é um desses. A guerra deixa marcas visíveis e invisíveis e não possui nada de heróico. A guerra é horrível e Eastwood nunca contradiz essa verdade.

Chris no seu difícil papel de juiz, de deus, onde decide quem vive e quem morre. "It's your call", a decisão é sua.

Chris no seu difícil papel de juiz, de deus, onde decide quem vive e quem morre. “It’s your call”, a decisão é sua.

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Lucas Simões – 27 anos, formado em Cinema e Mídias pelo IESB, quase formado em engenharia, quase judoca, quase nadador e quase melhor namorado do mundo de várias garotas. Atualmente trabalha com cinema na função de roteirista e script doctor, exercendo ocasionalmente a alcunha de continuísta em curtas-metragem da região. Sua atividade foi de setembro de 2014 a março de 2015.