Papusza (2013)

por Gustavo Fontele Dourado

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Papusza (Bronisława Wajs).

Bronisława Wajs, conhecida mundialmente como Papusza (Boneca em Romani) foi uma das grandes poetisas do século XX de origem cigana (ou de etnia Rom) e também era polonesa. Sua nacionalidade seria dupla e inusitada, uma espécie de cigana-polonesa na visão do Ocidente.  Os ciganos na Polônia da época eram bastante fechados para trocar informação sobre eles para outras comunidades e, apesar de entrarem em contato com outras etnias pela arte e pelo comércio, ainda hoje são odiados por alguns grupos de extrema direita da região influenciados por partidos de outros países como o Jobbik da Hungria.

Papusza é mais conhecida ao redor do mundo do que na própria Polônia e já entre os muitos ciganos ela foi linchada de seu meio de vida.

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A atriz Jowita Miondlikowska interpretando Papusza e que também é uma das roteiristas do filme.

O filme foi exibido no último BIFF 2014 (Brasília International Film Festival) com a tradução em português “A História de Papusza”, que com o desconhecimento da poetisa por grande parte do público, não seria considerado como um filme de gênero biográfico sobre uma figura que realmente existiu.

Os métodos dos diretores e dos roteiristas tratam a condição de vida de Papusza extremamente ligada ao meio coletivo (que é o mundo cigano). Às suas aspirações individuais (envolver-se à literatura, atiçar sua curiosidade e sensibilidades originárias da juventude que foi reprimida pelo seus amigos ciganos durante o período da meia-idade). E pelos sentimentos e pessoas fundamentais para os momentos de rupturas e marcos como seu marido, interpretado por Zibgnew Walerys e o poeta e tradudor polonês Jerzy Ficowski, interpretado por Antoni Pawlicki. Este último publicou em 1956 os poemas de Papusza com suas traduções para o polonês em um livro intitulado “Canções de Papusza”.

Os ciganos são um povo que não precisam de História e não a têm (na concepção ocidental do marco da escrita como o início da História), não têm interação com a escrita, com o alfabeto ou com o registro literário. Mas têm uma rica história material e de expressividade como as canções passadas oralmente entre as gerações, os hábitos e costumes, e a forma de organização social que se aproxima dos da Índia que é o país que remonta as origens históricas dos ciganos.

Isto é apenas uma forma distinta de se organizar historicamente. Nesse ambiente que é essencialmente musical e nômade, Papusza cresceu e teve contato com a literatura fora do mundo cigano, aprendeu a ler e escreveu seus relatos de sensibilidades que foram formatados em versos na publicação em livro. Ela os escrevia sem formatação de estrofes, versos e se aproximava das características de canções.

Jerzy Ficowski à direita, interpretado por Antoni Pawlicki.

Jerzy Ficowski à direita, interpretado por Antoni Pawlicki.

Como dilema principal, Papusza é ignorada pelo seu povo por ter traído os segredos ciganos seculares para a sociedade polonesa, para Gadjo (os que não são Rom,  que não estão inseridos na cultura e possuem certa descendência) e consequentemente para o mundo ter acesso. Ela não teve essa intenção e não pensou que a divulgação de suas sensibilidades em poesia seriam segredos perigosos e valiosos de sua comunidade.

No entanto, os ciganos não conseguiam ler o que estava escrito, a mera publicação violou o tabu: não se pode ter memória escrita. Os ciganos não podem por em risco sua sobrevivência divulgando seus conhecimentos. Papusza inclusive foi considerada no seu nascimento como um nome maldito e que traria azar.

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Papusza queima textos de sua autoria dentro de casa. Seu marido observa pelo lado de fora a ação.

Estilisticamente, o filme se destaca na primeira impressão pelas imagens selecionadas. Os personagens se adequam ao enquadramento, às formas do ambiente, às suas características e não pelo contrário numa camada mais geral, onde a imagem normalmente se adapta em função do elenco.

O povo cigano é nômade e se adéqua à natureza ao seu redor, aos pequenos vilarejos, são cheios de segredos e mesmo assim interagem com outras culturas como o relato do marido de Papusza que disse que tocou uma música para Lênin e que a música era tão boa que Lênin faria o músico cigano como um braço direito. Por viajarem à pé, os ciganos conhecem os lugares de um jeito riquíssimo, apesar da transição constante, pelas pausas e a velocidade lenta do deslocamento.

Nós, espectadores, conhecemos o filme como ciganos das imagens, há muito tempo para um plano belo, mas sempre transitamos por eles de alguma forma e há planos que realmente precisam do tempo necessário para captar sua complexidade de elementos. É preciso sentir o mundo. Atualmente há uma forma de nômade moderno, aqueles que viajam muito de avião e trafegam sempre com veículos. A transitoriedade é muito mais rápida, todavia não elimina a possibilidade de deslumbramento com o mundo. “Viajar enriquece os espíritos” (SAGAN, 2009, p. 413).

O relato do marido de Papusza sobre Lênin.

O relato do marido de Papusza sobre Lênin.

Com essa grande adaptação, a direção e a direção de fotografia trouxe na maior parte do filme planos conjuntos e gerais (imagens amplas) dos personagens com uma encenação complexa dentro de cenários e paisagens. Com uma composição fotográfica riquíssima e com diversos elementos cenográficos e de movimentação, podemos dar diversos focos de atenção num único plano. Há várias coisas acontecendo nos quadros em que os ciganos fazem pausas ou quando viajam. Nas pausas e descansos da comunidade há mais dispersão do olhar e mais pontos para dar atenção. Nas viagens menos coisas acontecem em quadro pelo movimento da caminhada nas estradas exigir organização coletiva, o que diminui a dispersão das personagens.

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Exemplo de vários atores num plano longo com raríssimos cortes.

Mas, mesmo com a adaptação dos atores à imagem, não quer dizer que eles tem muito pouca ou nenhuma influência sobre ela e que estariam totalmente sujeitos às leis do espaço. Em um dos planos mais impressionantes, Papusza sofre um ataque de tristeza, de desespero e de loucura por não suportar que foi ela a pessoa que traiu o seu próprio povo por ter tido educação, por saber ler e escrever. Os sentimentos de Papusza deformaram o espaço e se tornou uma prisão, um local que eles não conhecem e não conseguem se adaptar. Um ângulo de câmera muito diferente e que causa estranhamento e confinamento. Os planos amplos de florestas e campos são substituídos por prédios, pelo exílio, pela distância de seu próprio povo e pela crise de sentimentos na sua família.

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A prisão psicológica de Papusza.

Porém, para além do deslumbre instantâneo que as imagens provocam, a montagem assume um papel igualmente importante na construção do filme. O uso de “fade to black” aparece em diversos momentos de dor das personagens e também como uma forma de apreender a belíssima imagem que vimos e acompanhamos por muito tempo. A imagem fica por alguns minutos e em seus últimos momentos também demora para sair. A dor é mostrada no escurecimento, na lentidão, em respiros densos da edição do filme, o sofrimento das personagens realmente é forte e esse estilo trouxe mais pesar pelo que sentimos na tela. Já os sons assumem dimensões simbólicas como o vento soprado em Papusza em sua juventude, interpretada por uma cigana, trazendo os gritos de seu povo sofrendo em um incêndio por um conflito interno de visões dos ciganos e Gadjo.

Jovem Papusza.

Jovem Papusza.

Inclusive há uma cena em que o “fade to black” provoca uma elipse em que o cenário, o local, o plano é o mesmo e o vemos em um tempo diferente com a transição feita por esse recurso pouco usual atualmente, o de deixar a tela preta por um longo tempo e voltar com um fade in (aparecimento ou reaparecimento da imagem). Já nos sons há mais descontinuidades secas, a música não sofre fades e transições suaves, mas são retiradas abruptamente de uma cena para a outra.

Numa grande estrutura, o filme é não-linear e passa por vários anos no futuro e no passado. Pelos fragmentos da memória conhecemos melhor Papusza, pelas rupturas e pelos bons momentos. Só é possível entender e sentir melhor Papusza pelo seu coletivo em que ela era conectada e depois foi excluída. Nos seus últimos anos quase não há mais convívio e mais prédios preenchem seu espaço como se ela transitasse entre prisões.

Em uma cena emblemática, o segundo ano mostrado no filme, Papusza e seu antigo companheiro escutam uma música que não é cigana, uma ópera, dentro de um teatro, mas a melancolia é imensa. O que lhes restou é cada vez mais um consumo da cultura dos outros, o que possivelmente evoca as lembranças fragmentadas dentro de Papusza e a partir daí o filme regressa vinte anos na montagem. Na cena de abertura conhecemos o nome da personagem e sua origem, já nesta segunda cena é criada a condição para vermos o filme por fragmentos de memória, em alguns ficamos por bastante tempo, outros são curtos.

Da esquerda para a direita: Dionizy Wajs, interpretado por Zbigniew Walerys e Papusza, interpretada por Jowita Miondlikowska.

Da esquerda para a direita: Dionizy Wajs, interpretado por Zbigniew Walerys e Papusza, interpretada por Jowita Miondlikowska.

O livro “As Canções de Papusza” demorou séculos para existir, o primeiro livro dentro de uma cultura, finalmente há a possibilidade dos ciganos falarem mais ao mundo. Mas Papusza seria mais lembrada que esse próprio povo e ela seria uma aproveitadora das energias fundamentais dos ciganos, algo que era o olhar de sua própria comunidade. E por fora de sua sociedade era e ainda é considerada a simplicidade de grande força em seus poemas, sinceridade colossal, mas no filme temos pouco contato com sua “poesia”, que para ela não era poesia.

Tal como Tchaikovsky, sua vida pessoal foi destruída, mas teve reconhecimento em vida por sua obra. Porém, para Papusza não havia meio de fuga para esconder seus problemas pessoais, pois sua vida pessoal em meios saudáveis era a coletividade. Ao mesmo tempo uma poetisa maldita e celebrada.

Talvez possa ter passado em seu interior que trocaria todos os seus “poemas” por alguns dias de felicidade novamente nos espaços sem fim do que viver entre as paredes-prisões.

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Papusza em um momento de pausa.

Nota: O filme foi exibido no quinto dia de mostra competitiva no BIFF 2014 (Brasília International Film Festival), 02/09 às 20h30, com um pequeno debate após a exibição com o ator do filme Zibgnew Walerys. Além de duas exibições no Cine Cultura no Liberty Mall: uma na última quarta (03/09) às 21h e outra programada para o próximo sábado (06/09) às 16h30. O filme ganhou o prêmio de melhor direção para Joanna Kos-Krauze e Krzysztof Krauze.

Referências:

MENDES, Maria Manuela. 1997. Etnicidade, grupos étnicos e relações multiculturais: elementos para a compreensão das relações entre ciganos e não ciganos, no âmbito de uma Sociologia das Relações Éticas e Rácicas. Porto: Universidade do Porto.

SAGAN, Carl. 2009. Cosmos. 7ª ed. Lisboa: Gradiva.