Sherlock Holmes (1916)

por Não são as imagens

SHERLOCK REDIVIVO NOVAMENTE

As histórias de Sherlock Holmes possuem uma imensa pregnância e resistência no nosso imaginário contemporâneo. Dono de uma visão profana e ao mesmo tempo profética sobre a realidade, Sir Arthur Conan Doyle, inventor do personagem, se aventurou na ficção científica, nas histórias de dinossauros e no espiritismo além de, claro, ter criado o detetive mais famoso do mundo. Junto com Poe, pode ser considerado o inventor do gênero do suspense na literatura moderna. Ainda que seja sempre visto como um autor delirante e pulp (tipo um Georges Méliès da literatura), sua influência se estende para um universo incalculável. Da popularidade de Agatha Christie a personagens como Batman, toda a essência do suspense se atrela à mentalidade vitoriana, eminentemente positivista, que detectamos na capacidade analítica de Doyle.

1899 1916 William Gillette

William Gillette, ator principal do filme.

Logicamente isso nos faz perguntar a razão desta persistência, o que não é exatamente o tema deste texto. Mas posso arriscar já uma ideia livre que relaciona a perenidade do personagem não às histórias em si, esquecíveis, ou ao seu legado enquanto ser mítico-midiático (presente, por exemplo, na obra em quadrinhos A liga Extraodinária, de Alan Moore, ou na série de TV Penny Dreadful), parecido com o de tantos outros. Holmes talvez deva sua pregnância, na verdade, ao seu método. Fosse ele inquisitivo, dedutivo, indutivo ou abdutivo, pouco importa. Doyle planta Descartes na cultura pulp (que se transformaria, ao ser anabolizada pela indústria cultural, na cultura pop), através de sua racionalidade de almanaque, e transforma seu método na essência própria de sua literatura. Esta seria herdada, obviamente, pelo cinema (basta ver o encadeamento fílmico hiper-racional de um Christopher Nolan hoje em dia) e pela própria produção cultural em massa de uma razão logocêntrica.

Por outro lado, talvez não seja um exagero pensar-se que quem planta Descartes, colhe Derrida, e a razão dedutiva em Holmes, com foco no método, deságue no método desconstrutivo do filósofo pós-estruturalista, um emolidor de outros métodos, escritas, discursos. Derrida, como Holmes, centrava sua filosofia na capacidade de produção que a linguagem possui enquanto é operacionalizada. Produzir linguagem, nesse caso, seria produzir filosofia. Holmes funciona de modo parecido. Ainda o lemos porque queremos entrar em seu circuito dedutivo, funcionar segundo a operação de sua linguagem. Nada mal como legado para um punhado de romances baratos.

SH

Exibição na cinemateca francesa em 2015.

É assim, ao menos, que me lembro de meu livro favorito de Doyle, justamente o que apresenta Sherlock Holmes, Um estudo em vermelho, de 1887. Narrado (ideia brilhante) pelo Dr. Watson, somente chegamos a Holmes na metade do texto, quando já estamos quase inteiramente ambientados à técnica narrativa de Doyle, semelhante à do personagem. Desta maneira, o autor demonstra o real propósito de sua literatura: imprimir um circuito de pensamento, e depois aplicá-lo, na prática, na forma de um personagem. Fórmula precisa, exata, racional.

Logicamente, sendo o cinema clássico uma espécie de extensão técnica, industrial e estética desta jogada de Doyle, o personagem Sherlock Holmes foi diversas vezes adaptado ou mencionado nesta forma de arte. Meu preferido sempre será a metalinguagem de Sherlock Junior, um dos melhores filmes de Buster Keaton. Mas não podemos esquecer as versões cínico-histriônicas recentemente filmadas por Guy Ritchie ou a imagem teen da série de TV atual estrelada pelo ator Benedict Cumberbatch (para ficar em dois exemplos contemporâneos e de sucesso, demonstrando o vigor da perenidade do personagem). Não esqueçamos, contudo, o (talvez possamos chamá-lo assim) “clássico” de 1985 (muito reprisado na “sessão da tarde”) O Enigma da Pirâmide (Young Sherlock Holmes, de Berry Levinson), responsável por apresentar o personagem, ainda em um contexto doyleano, como adolescente e resolvendo seu primeiro caso. A constante reatualização do “mito” Holmes comprova certa necessidade de se reconfigurar suas premissas primeiras; requer que voltemos ao seu sistema comunicacional.

Mas onde começou, no cinema, tal reprogramação do personagem e do pensamento do Conan Doyle? A Cinemateca Francesa em Paris fez questão de responder a esta questão agora em Janeiro de 2015, por meio do festival “Toute la mémoire du monde” (“toda a memória do mundo”), ou “festival internacional do filme restaurado”, dedicado a mostrar os esforços dos restauradores de filmes antigos ao redor do planeta. O festival em si é uma atração incrível, mas não cabe aqui comentá-lo. Basta dizer que pude assistir à avant-première mundial da restauração do filme Sherlock Holmes, dirigido por Arthur Berthelet e produzido em 1916 nos Estados Unidos. Esta foi a primeira adaptação cinematográfica do personagem de Doyle, e sua última exibição em público havia sido realizada em 1920, em Paris. Portanto, durante quase 100 anos, ninguém havia visto este filme. Quem interpretou o personagem-título foi o lendário ator americano William Gillette, que o fez no teatro por 40 anos. Foi a primeira e única aparição de Gillette no cinema. As peças nas quais o filme foi baseado foram escritas por ele e, a despeito da fama do ator, nenhum ser humano hoje vivo o havia visto atuar. Havia muita expectativa da plateia na sala Jean Epstein da Cinemateca Francesa.

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Lançado pela produtora Essaney (um rival da Biograph, de Griffith) como uma série de quatro episódios semanais em 1916, Sherlock Holmes fez parte da febre que o cinema da década de 1910 tinha pelos seriados. Comum, banal e muito mais antigo do que o espectador leigo imagina, este formato foi muito popular na aurora do cinema, tanto nos Estados Unidos (basta ver a série de comédia Keystone Cops, ou as séries de aventura estreladas por Pearl White) e especialmente no cinema francês a partir da produtora Gaumont, que lançou as três clássicas e imprescindíveis (entre outras) séries do diretor Louis Feuillade: Fantômas (1913), Les Vampires (1915) e Tih Mihn (1919), nas quais Sherlock Holmes parece ser francamente inspirado. Estas séries, de cunho detetivesco e extremamente populares, mostravam, à moda tresloucada do primeiro cinema francês, a lógica de bandidos geniais e organizações criminosas “infalíveis”.

Sherlock Holmes, conforme pude ver na Cinemateca, parece uma resposta “benevolente” a estas séries degeneradas de Feuillade. Filmado exatamente dentro da mesma estética, o chamado “cinema tableau”, comum nos anos 1910, o filme compartilha com Feuillade várias características formais. Vale lembrar que o cinema tableau, hoje considerado “arcaico”, era perfeitamente compreensível e normativo para a década de 1910, e que outros modelos narrativos (o griffthiano incluso) concorriam com ele por uma supremacia no modo de representação cinematográfico. Sherlock Holmes abusa desta linguagem: há pouca decupagem analítica, ausência de campo/contracampo, pouca angulação fechada e ausência da montagem alternada. Todas estas ausências fazem com que o cinema tableau se sobressaia pela mise-en-scène fílmica (diferente da teatral, conforme argumenta David Bordwell), com interessante aproveitamento dos cenários e da (ainda primitiva) profundidade de campo, além, é claro, dos enredos elaborados a partir de uma linearidade bastante racional.

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Still de cena.

O filme apresentado na Cinemateca é a restauração de uma cópia francesa que já reunia, em uma só sequência de rolos, os quatro episódios da série americana de Sherlock Holmes. Eles têm a função de apresentar o detetive, assim como Watson, o Professor Moriarty e vários outros (muitos inclusive retirados do romance Um estudo em vermelho) segundo um paradigma de infalibilidade refletido na própria atuação sóbria (imediatamente aprovada) de Gillette, que traz à tona não apenas um Holmes cientista e impetuoso, que gosta de derrotar e desafiar os adversários, como sua indumentária clássica: o chapéu de detetive, a capa, a lupa, o cachimbo. Tudo isso ganhou cor especial a partir do acompanhamento musical ao vivo realizado por Neil Brand (piano), Andrew Bridgemont (violino) e Frank Bockius (percussão), que não apenas desenvolveram trilha dramática e narrativa em alto e bom som, como reproduziram “sons ambientes” do filme, como o bater de portas, o barulho de ratos, sons de tiros, etc.

A ênfase da trilha sonora em funções físicas (que trabalham a ação do filme) e técnicas (que operam transições entre os planos e cenas), mais do que em funções psicológicas (destinadas a elaborar o perfil sentimental ou afetivo dos personagens), denuncia já a composição linear, de narração literária (quase “fria”) do cinema tableau. Este cinema apresentava muito pouca decupagem, ou seja, pouca minúcia no recorte da cena, e pouquíssimos closes. Ele era derivado diretamente do cinema de “coleções” da década anterior, quando cenas completas eram apresentadas em um único plano, com toda a ação necessária transcorrendo sem cortes, como eram os casos de Porter ou Méliès. Narrativo, linear como uma fita métrica, o cinema tableau tinha muito pouco da dinâmica atravessada do cinema de Griffith, que àquela altura já havia realizado sua obra-prima O Nascimento de uma Nação, e que influenciaria o muito mais versátil e complexo cinema dos anos 1920.

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Pôster oficial.

Uma aresta perdida no tempo de um cinema dotado de uma linearidade composicional quase bestificante, Sherlock Holmes talvez fosse uma perfeita adaptação não apenas ao caráter lógico dos romances de Doyle, como é possível que fosse perfeitamente adaptado à estética e ao gosto popular da época. Comparado com Fantômas, o filme de Berthelet e Gillette parece até mais sofisticado, bem dirigido e atuado. Antes da consagração da recém-criada Hollywood, estúdios como a Essaney já eram capazes de produzir um cinema que chegava ao ápice na qualidade da linguagem que haviam optado por desenvolver. Eles não esperavam, no entanto, que este modelo de cinema fosse um “galho podre” que seria logo extinto, e que fórmulas mais arrojadas, derivadas especialmente de Griffith, prosperariam. Como um gene que é passado entre espécies, por outro lado, o modelo cultural de Sherlock Holmes sobreviveria, resistente, como sobrevive até hoje, mostrando que temáticas e linguagens nem sempre andam no mesmo compasso.

Texto escrito por Ciro Inácio Marcondes. Crítico, professor e pesquisador nas áreas de Cinema, Literatura e Histórias em Quadrinhos. Edita o site de crítica de quadrinhos Raio Laser.