O Casamento de Maria Braun (1979)

por Victor Cruzeiro

Todos os filmes de pós-guerra dos EUA são iguais. Todos os filmes de pós-guerra do cinema alemão são diferentes, ao seu modo. Tomemos os de Rainer Fassbinder e seus mais de 40 longas, mais especificamente os da Trilogia BRD [Bundesrepublik Deustchland, a Alemanha Ocidental]. Nestes três filmes, Fassbinder constrói personagens que, à sua maneira, catalisam e expõem o país envergonhado que emerge de um conflito perdido.

Com o fim da Segunda Guerra, o orgulho alemão [Nationalstolz], responsável por moldar o país aos delírios nazistas, desmoronou, dividindo o país em duas grandes metades, e esmagando-o todo sob uma culpa imensa. Enquanto o lado oriental era abraçado pelo comunismo, que fingia não lidar com a derrota e a culpa, o lado ocidental saboreou suas próprias lágrimas amargas enquanto se reconstruía sozinho e tentava lidar com a responsabilidade do horror nacional-socialista.

Esse orgulho fraturado e destruído está presente nas três protagonistas da Trilogia BRD que, cada uma a seu modo, trazem uma reflexão dura e dolorosa, como era do feitio intenso de Fassbinder…

No entanto, não é o suficiente declarar que Maria Braun, Lola ou Veronika Voss são alegorias da nova Alemanha. Muito mais do que isso, elas são como pontos focais, ângulos diferentes de um mesmo espectro, do qual há muitas visões distintas e, também, similares. No caso de Maria Braun, foco deste texto, a reflexão é ainda mais direta, pois se passa precisamente no proscênio do pós-guerra e da reconstrução desta Alemanha.

O Casamento de Maria Braun

O Casamento de Maria Braun

Maria Braun (Hanna Schygulla, umas das atrizes preferidas de Fassbinder) casa-se com um soldado durante o fim da Segunda Guerra, em meio a um bombardeio. Seu esposo, Hermann, vai para a frente de batalha e não retorna, dado como morto. Daí para frente, Maria entra em um turbilhão que a leva do fundo do poço, de atendente em um bar de soldados americanos, ao topo, como conselheira e amante de um grande industrial têxtil.

De certa forma, portanto, Maria Braun representa a Alemanha ainda aferrada à predestinação da riqueza protestante, que flerta tão bem com o capitalismo recém instaurado pelos estadunidenses, no mundo, após a Segunda Guerra. Em outras palavras (num vocabulário mais familiar), Maria Braun é uma meritocrata, que chegou onde chegou porque se esforçou muito…

Mas. Maria Braun e muito mais do que isso. O filme não mostra apenas as vitórias da protagonista, também acompanha a agonia da derrocada. A família, a casa, as ruas por onde a protagonista passa, representam um microcosmos do que acontecia no país derrotado. E, indo além, Fassbinder utiliza um amplo espectro de referências que vão além do visual para construir esse microcosmos. Em especial, o som.

Quando Maria caminha pelas ruas destruídas de sua cidade, entrando em uma ruela onde pessoas vendem de tudo tentando conseguir algo em troca, ouve-se alguém, de fora de campo, pedindo uma música a um acordeonista, que após começar uma canção e ser rejeitado, toca a famigerada Deutschland, Deutschland über alles, o então hino alemão que, após a Reunificação foi reformulado com as duas primeiras estrofes cortadas.

O contrabandista, interpretado por Fassbinder, deseja boa sorte à jovem viúva.

O contrabandista, interpretado por Fassbinder, deseja boa sorte à jovem viúva.

Também o jazz, um dos maiores êxitos culturais dos Estados Unidos da época, e uma prova de sua invasão não só militar no mundo pós-guerra, cerca Maria em todos os seus momentos no bar dos aliados, inclusive quando ela recebe a notícia da morte de Hermann e vai buscar consolo nos braços do soldado Bill.

Maria entra no bar dos americanos buscando consolo. Ao fundo, jazz.

Maria entra no bar dos americanos buscando consolo. Ao fundo, jazz.

Já o rádio aparece em Maria Braun como mais do que um mero objeto de cena. À guisa do coro das tragédias gregas, ele é quase uma personagem, pontuando, contextualizando, dialogando e, muitas vezes, julgando ou ironizando. Na primeira fase do filme, enquanto Hermann está desaparecido e os aliados tomam conta da cidade, o rádio interrompe a nona – e última! – sinfonia de Beethoven para um informe sobre pessoas desaparecidas. A sinfonia em questão, nunca mais volta.

Após o início da sua relação com o industrial Oswald, Maria está em casa conversando com sua família, mas a conversa quase não é ouvida, pois o rádio ocupa todo o espaço, transmitindo trechos do discurso do então chanceler Konrad Adenauer enfatizando a importância do desarmamento da Alemanha Ocidental.

De maneira espelhada, ao fim do filme, quando Maria, já rica e bem sucedida, vê sua vida ruir frente a uma péssima notícia, o rádio de um restaurante aparece onipotente com o mesmo chanceler bradando que “temos o direito de nos armar o quanto pudermos e quando quisermos”.

Finalmente, a última sequência do filme é ironicamente narrada pela transmissão de rádio da final da Copa do Mundo de 1954, quando a Alemanha Ocidental venceu a Hungria por 3×2 e conquistou o título de campeã mundial.

Fassbinder utiliza o rádio, portanto, literalmente como um arauto de notícias, uma personagem que congrega toda a população em uma só voz, numa atualização do que os autores trágicos clássicos faziam. Cabe lembrar que o rádio é um dos símbolos do boom econômico estadunidense do pós-guerra, que o consolidou como um dos meios de comunicação mais importantes do século.

Nesse ponto, Rainer Fassbinder aproxima-se muito – e como negar? – de Bertolt Brecht. O dramaturgo alemão preocupava-se muito com o uso do rádio como um meio de comunicação realmente democrático, ao invés de limitar-se a uma tecnologia burguesa, que não recebe, mas apenas emite.

Extrapolando a teoria, Brecht tenta utilizar esse caráter público/interativo do rádio em suas peças, como A Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, na qual o rádio está sempre no palco, não apenas dialogando com as personagens, mas apresentando o que está fora de campo.

Além disso, o rádio-coro brechtiano serve para contar o que não é essencial à narrativa. Essa é uma das características do drama épico, seguido por Brecht, que prezava pela separação dos elementos – palavra, som, imagem – para evitar a hipnose catártica do drama convencional, que envolve e amortiza o espectador. A narrativa épica não conta nada além do necessário e faz saltos longos se preciso e, nesse ponto, o rádio-coro introduz as informações desnecessárias. Exatamente como em Maria Braun.

Como último ponto, cabe lembrar que Brecht foi, assim como Fassbinder, um ferrenho libertário, exilado e perseguido pelo nazismo. A diferença é que Fassbinder nasceu já na derrocada do regime de Hitler, mas, como toda sua geração, teve a obrigação de expurgar os fantasmas de seus pais e de seu país, sozinho e sem ajuda, assim como Maria Braun, assim como Veronika Voss, e assim como a própria Alemanha…

Maria. já rica, relembra o passado com sua melhor amiga em meio às ruínas de um prédio.

Maria. já rica, relembra o passado com sua melhor amiga em meio às ruínas de um prédio.