Encurralado (1971)

por Gustavo Fontele Dourado

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Dennis Weaver interpreta David. Já o caminhão deixa muitos atores e atrizes como profissionais menos talentosos.

Como o título original Duel sugere, o filme é um confronto e uma luta entre duas personagens: David Mann e o caminhão a diesel de várias toneladas. Um duelo sem explicação plausível que cerca David Mann – o motorista do carro vermelho – até o limite, o que faz Encurralado (título em português no Brasil) uma boa tradução para a sensação que David sente na maioria do filme.

Spielberg vinha com um currículo de 11 anos ao dirigir este filme para a televisão que levantou a sua carreira para novos horizontes. Ele tinha dirigido vários curtas com a família e na faculdade de cinema da Califórnia como The Last Gun (1959) e Amblin (1968), depois entrou para o mundo da TV sempre com o desejo de entrar no cinema, ele queria mesmo dirigir filmes e não ir para a TV. Porém ele reconhece que ter entrado na TV foi um ótimo início para a sua carreira, permitiu fazer comparações de linguagem, exercitar modos de produção e continuar o trabalho como diretor. Ele foi contratado para dirigir alguns episódios de séries, exemplos são Columbo (1971-2003) e Marcus Welby, M.D. (1969-1976), respectivamente com um único episódio Murder by the Book (em 1971 para o seriado Columbo) e The Daredevil Gesture (em 1970 para a série Marcus Welby, M.D.). 

Encurralado consagra os poucos anos de Spielberg na televisão, depois dele vieram mais dois filmes para a TV e a iniciação como diretor no cinema com Louca Escapada em 1974, um filme mediano. Porém já encontramos uma grande obra de Spielberg já em Encurralado – um filme feito para a TV, que deixa Louca Escapada como uma tentativa tímida dos seus talentos como diretor e um road movie menos interessante do que Encurralado.

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A estrada mortal. O único caminho possível.

O resultado que Encurralado proporciona é um sufoco e paranoia como marcas essenciais, David Mann é um personagem que não pode saber demais, ele só pode fugir ou ficar parado. Seu progresso na história só pode acontecer caso ele se livre das brincadeiras que o caminhão coloca. Não experienciamos uma pessoa dentro de um caminhão, ele é a pessoa – uma espécie de agente que abusa de sua força contra David Mann depois dele fazer uma simples ultrapassagem em uma pista pouco movimentada. Depois disso, o caminhão impõe absurdo atrás de situações inacreditáveis sobre David, uma vingança sem fim.

O filme é uma espécie de teste contra David, uma prova de que ele pode ser um personagem importante e não chato. Nos primeiros minutos ouvimos um programa de rádio absolutamente desinteressante, repetitivo e longo enquanto David dirige despretensiosamente para uma entrevista. No fim da obra gostamos de David e do sufoco que ele enfrenta, o caminhão é um narrador que priva David de qualquer informação, de distrações e de justificativas. O que interessa no filme é uma perseguição obsessiva do caminhão atrás de David . Nas primeiras partes até vemos dois exemplos de distrações como o ônibus escolar e a vontade de David por querer respostas por tal absurdo. O caminhão simplesmente ajuda o ônibus escolar para que David não fique parado na estrada e use o ônibus como muleta para não seguir em sua jornada insana. Já a cena no café deixa como exemplo que será muito difícil encontrar explicações para qualquer coisa. Ou mesmo chamar a polícia por uma cabine telefônica de uma mulher que cuida de serpentes no meio da estrada, porém o caminhão não deixa esse tipo de brecha para David.

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David encontra as crianças do ônibus escolar que quebrou.

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David por um momento acha que a situação se resolveu.

A narrativa é o confronto e a perseguição, as alternativas que poderiam livrar David facilmente da situação são descartadas pela vontade impiedosa e afirmativa do caminhão, “nós precisamos brincar, tudo acabará dentro do nosso confronto, outras pessoas não devem ser envolvidas e você pode ficar parado o quanto quiser, não fugirá do jogo que eu construo”. A tensão psicológica é focada na observação e nas ações apreensivas de David, enquanto que o caminhão é um cínico e irônico sem se remeter à materialidade de uma pessoa, seu corpo é impessoal, destrutivo e poderoso. Lembramos do caminhão e não da pessoa que há lá, imaginamos que tipo de indivíduo dirigiria tal monstro ou podemos esquecer que há uma pessoa lá. Uma situação sarcástica que nos lembra que ainda há uma pessoa dentro do caminhão é a de um braço saindo da janela do motorista reafirmando a vontade do monstro: “você tem que participar do meu jogo, siga em frente na estrada se você conseguir passar por mim”.

Faço a interpretação de que o narrador é o motorista do caminhão, ele quer por uma personagem à prova e colocá-lo em obstáculos. O que vai prevalecer? A narrativa insana imposta pelo caminhão ou a vontade da personagem de se libertar? Ele é um narrador que subestima a vontade do herói frágil e em um certo momento David se fortalece e consegue enfrentar o caminhão com mais condições. O narrador por ter subestimado o seu herói dentro do jogo que criou, também encontra limitações dentro do mundo como a subida no precipício. O caminhão é o antagonista puro que reveste o narrador lá, escondido e brincalhão atrás de sua quarta parede dinâmica, o filme só existe por causa dele. O narrador quer brincar de lutar, não quer descrever uma reportagem informativa ou passar mensagens. Que Spielberg retorne inspirado em novos filmes e repita menos o toque maçante de Lincoln (2012), que evite as escolhas erradas em Indiana Jones 4 e que busque o seu toque que tinha nos anos 80 e início dos anos 90 com o ecletismo entre gêneros e não um suposto desejo de focar em “filmes sérios” como certos dramas, seu grande talento está na aventura e no humanismo.

Encurralado é triunfante, não se preocupa em oferecer um contexto prolífico e nem uma trama estruturada e complexa – o pretexto do filme é simples e isso não faz dele um filme menor. Lembra um certo diretor sueco famoso que teve uma ideia simples de fazer um filme com duas mulheres, uma enfermeira e uma atriz de teatro que não fala, e os seus conflitos psicológicos. Uma ideia simples que gerou uma das obras mais importantes do século XX, Persona (1966). Às vezes podemos confundir que uma grandiosidade de um filme está em uma trama muito complexa desde o início da concepção ou de uma ideia genial que provoca suspiros. “[…] um filme morre quando se torna simples veículo de uma mensagem” (Orson Welles), o filme de Spielberg não é uma justificativa, nem uma moralidade e nem um manual de como se deve viver. Ele é um exemplo belo do poder do cinema, da expectativa e do medo.

Certamente é louvável a direção de Spielberg já com características marcantes de sua carreira como a do pai ausente e os planos bem articulados para comunicar uma cena. É possível até assistir o filme sem os diálogos, o que importa são os olhares conflituosos de David e o choque dos objetos da obra, é o conflito do indivíduo com o monstro. Do personagem com o seu narrador dentro do mundo que ele construiu, o mundo de perseguições e de vinganças. Encurralado destaca o trabalho de Spielberg e com certeza lhe trouxe recompensas. Um dos poucos filmes dele que oferece poucas respostas e menos reconfortos (ver comparação entre Spielberg e Kubrick feita por Terry Gilliam). Este é o filme inquietante de Steven.

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Steven Spielberg.

A voz interna de David só reforça a comunicabilidade de que ele acha tudo inexplicável e psicótico e ao longo do filme paramos em pit stops dramáticos. A perseguição não é apenas entre carros em alta velocidade, ela é também presente na expectativa de David se o caminhão vai aparecer novamente depois de despistá-lo ou de ter se escondido dele por um bom tempo ou pelas pessoas que estão alheias a isso e não entendem que aquilo é um monstro. Graças a esses pit stops o filme não fica repetitivo ou a perseguição fica com um único fôlego. Mesmo Mad Max: Estrada da Fúria (2015) precisa de um pit stop.

A perseguição em Encurralado oferece alguns absurdos variados com poucos elementos, com destaque ao cliff hanger (à beira do precipício, situação máxima de um clímax) de David Mann com o carro pifando em uma subida, enquanto o caminhão sobe lentamente a pista devido ao seu peso. Quando David chega no topo da montanha, ele consegue descer a pista íngreme e se encaminhar para o desfecho.

Um dos melhores filmes sobre paranoia e como suspense é marcante, com certeza é um filme feito nos primeiros anos de carreira que pode ser considerado com orgulho por um diretor mais experiente. Não é um suspense de que algo vai ser achado ou que os elementos vão ser descobertos aos poucos, ele é um suspense de sobrevivência feito pelo cineasta do inacreditável.